25 março 2018

Frederico Füllgraf - Um copião para Alexander Kluge - notas sobre um desencontro produtivo

Fotos de cima para baixo: Theodor Adorno
com Alexander Kluge (1958); Fritz Lang (anos 1960);
A. Kluge (anos 2000).





                                                                                                  Para Luciana Vilas Boas


Neste momento, ele deverá ter lido a carta que lhe mandei; uma versão ligeiramente personalizada da estória que vou contar, e que começa assim: 


“Lieber Alexander, você não é culpado pelo rumo que minha vida tomou...”

No início da narrativa de “O caminho de Tula”, romance em construção, meu personagem, Hannes, filho de emigrantes europeus, criado no Brasil, relembra sua passagem pela agitada Frankfurt do pós-1968.

Um belo dia pedira licença na distribuidora de livros, seu primeiro emprego naquele território das descobertas, pretextando uma consulta urgente ao dentista. Era uma mentira que encobria sua ansiedade por ver e ouvir, em carne e osso, uma aula do mítico filósofo, Theodor Adorno, cujos livros estavam entre os mais solicitados nas encomendas diárias das livrarias. Contudo, ao baixar do bonde, à entrada da Universidade Johann Wolfgang von Goethe, deparara-se com uma curiosa barreira policial que o impedia de realizar seu sonho. O que acontecia ali? O célebre autor da “Dialética do Esclarecimento” e crítico feroz da moral impostora mandara chamar os homens da lei porque um grupo de moças interrompera seu vôo semanal para esferas do elevado pensamento com um atentado bastante mundano e ardiloso, cujas armas foram alguns pares de peitos nus; nus e belos advertira um dos policiais, mas não concedendo a Hannes o estatuto da dúvida, porque não o deixara cruzar a barreira
.


O atentado


Início de primavera com maus presságios, nem bem iniciara sua “Introdução ao pensamento dialético”, Theodor W. Adorno fora interrompido por um de seus estudantes, que lhe exigia uma “autocrítica”. Autocrítica - eu? – indignara-se o velho professor, marxista da mais fina cepa. Uma resma de panfletos fora lançada aos ares da sala, cujo título decretava: “Adorno está morto!” Tumulto nas galerias! Facção radical do movimento estudantil, o “Grupo de Base da Sociologia” cobrava de Adorno e seu ex-aluno, Jürgen Habermas, que “abraçassem a luta de classes”. Para não deixar barato, um engraçadinho rabiscara no quadro negro um verso rimado: “Enquanto o Adorno, querido, repetir sua eterna mesmice, pro resto da vida teremos capitalismo e burrice!“. E então o atentado carnal: quando algumas moças despiram blusas e sutiãs, exibindo seus bem talhados seios, ameaçando beijar e bombardeando o distinto pensador com uma chuva de flores, o ex-colega de Herbert Marcuse e patrocinador de Walter Benjamin juntara seus livros e agendas, esparramados sobre o púlpito e, protegendo o rosto com sua bolsa de couro, deixara o anfiteatro sob lágrimas.

Poster do SDS: "Todos falam sobre o tempo, nós não!"
(queriam dizer:"falamos na luta de classes")

Este é o relato póstumo de uma das moças que durante trinta e quatro anos mantiveram segredo de suas identidades, até que Hannah Weitemeier, uma delas, hoje respeitável marchand e senhora muito bem casada, admitiu em sua primeira entrevista sobre o incidente, que nem aluna de Adorno era, mas pau mandado do SDS, a federação de estudantes socialistas. Incidente do qual inicialmente se suspeitara, fosse o despertar do feminismo, ele foi execrado como “grande sacanagem com o venerável professor”, até pelas mais aguerridas mentoras do movimento – por acaso os provocadores do tumulto tinham se esquecido que Adorno era descendente de judeus, perseguido pelo nazismo?

No meio da confusão, tudo o que Hannes conseguira distinguir naquela fatídica manhã de 22 de abril de 1969, foram a calva e a pancinha proeminente do incensado pensador, que em entrevista aos meios de comunicação queixava-se da traição de seus estudantes, principalmente aquelas... “amazonas, loiras” – logo ele, o Catilina libertador dos grilhões do capitalismo e da libido reprimida!

E esse foi o primeiro contato esbanjando carnalidade, mas destituído de toda aura acadêmica, de Hannes com a lendária “Escola de Frankfurt”, cujas luzes naquela manhã piscavam como neon profano de um castelinho de striptease, anunciando, debochado, a “dialética do insuspeitado nu”.

O café com Adorno

O que Hannes não poderia imaginar é que, tivesse sido mais persistente, cativando os policiais com um pouco de charme latino, e se aproximado do laureado mestre, teria ganhado aquele dia duas vezes, registrando para a posteridade o insólito encontro com Adorno, e redescobrindo a pista de seu herói, do qual se tinha desgarrado.

Com sua auto-estima em baixa, tudo o que Adorno precisava naqueles momentos era um abraço que lhe brindasse afeto e não a rude luta de classes.  Kommen Sie – venha comigo! Sem pestanejar, o aplaudido professor o teria conduzido até sua sala no Instituto de Pesquisas Sociais, pedido à sua secretária que lhes servisse um café e, dando-se conta que tinha diante de si um admirador, sul-americano e simplório, ali mesmo teria derramado seu desabafo – essa esquerda, de classe média e boquirrota, é um porre, meu jovem! Quer dizer então que o sr. veio à Alemanha para “estudar cinema”? – Adorno o teria acuado na poltrona, mas para já emendar que, fazia uns doze anos, naquela sala entulhada até o teto de livros e manuscritos, fora padrinho de um ritual de iniciação que todo aspirante à sétima arte celebraria como intercessão divina, um delicado mimo dos anjos, porque apresentara seu amigo, Fritz Lang - IMDb – aquele mesmo, o diretor de Metropolis (1927) - IMDb - a um jovem doutorando, chamado Alexander Kluge. Doutorando em Direito, teria então ressaltado Adorno, que não pensava grande coisa do cinema, e por isso recomendara a Kluge que tratasse de construir uma sólida carreira de jurista, com direito a um provento idem. Aquela prosa de pai ou mentor, bem intencionado, que sabe muito bem: quando seu tutelado diz, “jawohl, Herr Professor!”, está mentindo, porque, atravessada a porta, sai à rua para fazer exatamente o contrário. E foi o que Kluge fez: sequer pendurou as chuteiras da jurisprudência, porque jamais chegou a usá-las, nem num escritório de advocacia, quanto mais num tribunal, e jogou-se de corpo e alma na arena do cinema – que os leões o estraçalhassem!

Sem saber que ele tinha mandado às favas o Direito, quinze anos mais tarde eu fiz o mesmo, traindo a família e chutando para o alto a carreira de geólogo. Com uma ligeira diferença: a frase imaginária arremessada ao universo por Kluge, assim, de bobeira, teve efeito demolidor; mas com a disciplina como causa, que eu não tive. Nela é possível enxergar uma dupla de trocadilhos. O primeiro emprego de Kluge foi como assistente de Fritz Lang, que em 1958 retornava à Alemanha após vinte e cinco anos de exílio, para filmar “O tigre de Eshnapur” e “O sepulcro indiano”. Contrariando todas as expectativas, o tigre dos estúdios em Berlim não o estraçalhara, mas lhe infundira imenso “tédio”, Kluge confessaria anos mais tarde; talvez porque Lang já fosse um tigre desdentado, sem a garra dos tempos da gloriosa UFA. O segundo trocadilho ocorre com a volta do leão à carreira do cineasta, que não era o leão da Metro e, sim, de Veneza, em cujos festivais Kluge tornara-se o matador, amansando várias estatuetas do felino, de prata e de ouro, com as quais, ao final dos anos 1970 sua carreira estava consolidada.

As camas art-déco


Contudo, nesta flexão da espiral de causos narrados com grande noção de responsabilidade cabe perguntar qual era, afinal, a missão de Hannes? Como ensaio de resposta, permito-me alertar minha querida editora, mulher a quem devo um balaio de oportunidades, a um incidente de percurso: feito Leopold Bloom tupiniquim durante sua labiríntica odisséia por Frankfurt, o personagem Hannes se esquece de perseguir Alexander Kluge, a cujos rastros se aferrara desde que, na Curitiba do final dos anos 1960, assistira aquele filme emblemático, “Despedida de ontem” (Yesterday Girl, 1967), protagonizado por Alexandra Kluge, irmã e xará do diretor, dublê de médica e atriz de ocasião, com aquela expressão de beleza desolada em seu rosto.




Alexandra Kluge

Diz Hannes que se esquecera de Kluge porque, cheio de curiosidade e dispersivo, fora abduzido para suas primeiras lições na arte da contemplação do belo, fora das telas: mulheres bonitas, porém assaz determinadas, cuja cartilha embruxada rezava que fazia mal à alma feminina dormir duas vezes com o mesmo homem. Sem dar-se conta Hannes deambulara por Frankfurt como personagem de um lerdo e brumoso sonho de noite de verão, sempre abandonando o Club Voltaire de madrugada como pupilo de um muito peculiar e solitário curso de iniciação artística, que consistia em decifrar os estilos de época das camas das suas amantes – jugendstil, art-déco, tatamis, colchões plebeus estirados no chão - quando estas desfaleciam nuas ao seu lado após se embebedarem com a Taça de Circe. Aquilo o confundira pra valer, mas era o Zeitgeist de suas educadoras.
Então, o inevitável conflito, não com as donas das camas, mas entre o personagem e seu autor: Hannes queria estender-se na descrição de sua luxúria, inventando pretextos que o redimissem do fracasso de sua missão já estabelecida no Brasil - encontrar Alexander Kluge a qualquer preço. Tudo muito constrangedor! Por isso interferi quando, subitamente, dei-me conta de que o relacionamento com Kluge e sua arte, antes de nada mais, pertencem a mim: até segunda ordem suspendi as inferências frívolas do personagem, e matutei se meu herói desrespeitado por Hannes não mereceria um livro à parte – eis a elipse com segundas intenções cochichada, quase inaudível, para minha querida editora (aqui advertida para a publicação, pela concorrência que não dorme em serviço, de “O quinto ato”, de Kluge).

Mas a crônica ainda não faz sentido – o que esses causos, todos, têm a ver com o título? O que eu precisava ter esclarecido é que a estória dentro desta estória começa em um final de tarde friorento, em Curitiba, quando Christo Dickoff me levou até a Cinematográfica Guaíra, ao pé de cujas salas localizadas num pavimento elevado de um sobradão, antigo, se descortinava a Praça Tiradentes, em sua babélica quadratura.

Mauro Alice



Eu trazia nas mãos um punhado de cartazes do Jovem Cinema Alemão que me tinham sido confiados pelo diretor do Instituto Goethe para divulgar uma mostra. Em nossos corações e mentes de cinéfilos, Godard, Truffaut e Resnais eram nomes e endereços devidamente assimilados como ícones da Nouvelle Vague. Mas Junger deutscher Film – o que era aquilo? Lembro-me do espanto ao soletrarmos nomes tão infreqüentes como Volker Schlöndorff, Jean-Marie Straub e um tal Alexander Kluge. E estudando-os com olhos lampejantes, Mauro Alice, aquele senhor elegante e montador da Vera Cruz, em férias na sua Curitiba natal, decolara para uma viagem na memória, pontificando sobre o Expressionismo Alemão, Fritz Langs e Caligaris, tudo para mim tão fantástico e intangível, que meus olhos não queriam desgrudar dos lábios do italiano.

Mauro não vacilou um instante: com uma velha Arriflex, 35 mm, montada sobre um tripé, desafiou-me para dividir com ele a “direção”. Na verdade, mero ensaio de “natureza morta”, umas pinceladas da câmera sobre uma superfície de papel, sem cenário vivo, ou atores para orientar - e estavam filmados os cartazes dos filmes alemães. Aquele fora um ato batismal: minha iniciação técnica no cinema. O que era um “close”, um “tilt”, um “contra-plongée”, um “travelling” foram noções que a partir daquela tarde reforcei com a leitura de um livrinho de “primeiros passos”, de Maurício Rittner, que eu teimava em decodificar a bordo do ônibus sacolejante, rumo à escola. Sim, eu não passava de um garoto.


Freqüentador assíduo dos “filmes de arte” do Colégio Santa Maria, o Cinema definitivamente me seduzira como promissão, embora em casa todos apostassem em meu futuro como geólogo da Petrobras. Por um fio fui desviado do chamamento, não fosse o movimento estudantil e a decisão do meu pai, assustado com a UNE, de me “tirar de circulação”. E embarcado num cargueiro de minérios, no porto de Vitória, fui circular na margem boreal do Atlântico.


A lata de negativo


Na bagagem eu trazia um talismã: o copião com os poucos metros de película 35 mm, que estampavam aqueles cartazes generosamente filmados e revelados por Mauro Alice. Deslumbrado por dois de seus filmes – “Despedida de ontem” e “Os artistas na cúpula do circo: perplexos” - eu me obstinara que algum dia presentearia aquela lata a Alexander Kluge como prova de minha devoção, mas também com a segunda intenção de cavar uma vaga em sua equipe de produção.


No fundo, quero dizer, na esfera do subconsciente, essa intenção era um pouco mais torta: eu precisava de um mestre, mas não tivera um pai presente; possivelmente estava à procura dos dois em um só.


Uma bela noite, em Kassel, fui ao cinema, e na sala de espera deparei-me com o cartaz de “Os artistas na cúpula do circo...” – aquilo seria uma piada? Como quem não quer nada me aproximei do gerente que afixava cartazes das próximas estréias e, comendo pelas bordas, perguntei se ele sabia onde morava o Kluge. E me lembro perfeitamente que não conseguia fechar minha boca quando o gerente disse, “olha, é fácil encontrá-lo, porque ele mora aqui, em Kassel!”. Ao despedir-me, dei meia volta e perguntei se ele tinha de sobra aquele pôster de “Os artistas...”. Mas claro, respondeu aquele homem gentil, e o presenteou-me.


Meu coração batia forte: o espectro do meu guru parecia ganhar corpo – seria o magnetismo da latinha de 35 mm? Invadido por uma alegria nunca antes sentida, jubilosa e devastadora, já me percebia estendendo cabos elétricos na próxima filmagem d “o cara”, mestre sonhado, mas intangível. Contudo, o sonho que na ante-sala do cinema prometera materializar-se foi bruscamente interrompido dias depois por minha mudança para Frankfurt. E nunca mais vi Alexander Kluge. Que não morava mais, ou jamais morara em Kassel, e que por ironia filmava um filme atrás do outro - em Frankfurt! Nosso encontro nunca aconteceu. Não em Frankfurt. Ocorreu por acaso, oito anos mais tarde, num pequeno cinema de Berlim, onde fui assistir ao lançamento de “A Patriota” (1978).


Terminada a projeção do filme e acendidas as luzes, havia uns setenta, talvez oitenta espectadores na platéia. E lá estava Kluge, à frente da tela, vestindo seu indefectível terno escuro, sempre de elegante corte, mas sem a gravata, com a qual dirigira seus primeiros filmes. Acho que com o passar dos anos passara a detestá-la, e então disse, rindo: “Bem vindos ao meu cineminha privado!” Queria dizer: eu faço mesmo filmes para meu clube do bolinha – um surto de falsa modéstia, porque a maioria de seus filmes, ou foram aplaudidos em cena aberta, ou ovacionados em pé pelo público em festivais internacionais.


O que é, e como narrar a História?


Em “A Patriota”, a ingênua, mas determinada professora de história, Gabi Teichert, investiga as raízes da História alemã. Alta madrugada, uma pá na mão, ela é flagrada pelo porteiro ao cavar buracos no jardim de seu prédio. Alertada ao estrago que está fazendo ela responde com a maior cara dura que “é preciso cavar fundo para descobrir a verdade histórica“. Obviamente, diante de tal disparate o porteiro entende que tem diante de si uma doida varrida, mas trinta anos depois, aquela metáfora e a imagem insólita diante da câmera continuam impregnadas em minha memória.




Na última cena do curta-metragem, “Amor cego” (2001), no qual Kluge entrevista Jean Luc Godard, após a estréia de seu longa, “Ode ao amor” (2001), o diretor suíço-francês diz: “A história jamais foi bem reproduzida pelo cinema, apenas de modo espetacular. Para isso, o cinema teria de ter se tornado adulto e ter se tornado maior, e agora está muito tarde, agora acabou”. Essa crença de Godard é romântica, e por incorporar excesso de páthos é falsa.

Com o passar dos anos, percebi que as personagens, Gabi Teichert e Leni

Peickert, que povoam alguns filmes do diretor nas décadas de 1980 e 1990, eram na verdade alter-egos do próprio Kluge. Este concebe a História real como vasta coletânea de estórias dispersas, e adaptou para sua técnica narrativa o modelo exitoso dos Irmãos Grimm, autores da frase emblemática, “mergulhamos na História alemã e descobrimos um monte de contos de fada”. Por isso os filmes de Alexander Kluge são colchas de retalho extravagantes, que se alimentam de cenas ficcionais, reportagens, figurinhas de gibi, fotos, recortes de jornal, cinejornais históricos, entrevistas e textos; recursos para ativar a própria capacidade do espectador em estabelecer nexos entre imagens vastamente disparatadas.


O resultado da aplicação dessa técnica está sintetizado numa frase do diretor no quinto capítulo de seu livro making-of sobre a produção do filme, “O Capital”, onde resume sua proposta bem-sucedida para uma “renovação radical do cinema”. Diz Kluge: “O cinema antigo rodava uma trama a partir de vários pontos de vista. O novo cinema, em oposição, monta um ponto de vista a partir de várias tramas”. Essa concepção remete a Sergei Eisenstein, que cunhou o conceito de “montagem de atrações”, segundo Kluge, “o grande circo - é isso o que o cinema sabe fazer”.


Quinze anos após sua estréia no cinema com filmes de narrativa convencional, ali Kluge iniciava seu projeto da gradual desconstrução do discurso cinematográfico antigo com a firme intenção de re-educar parcelas do público cinéfilo, mas sem a petulância que adere ao verbo, o que fez com muita criatividade e bom humor. Digamos que ali Kluge estreava sua cruzada estética contra a síndrome da cegueira diagnosticada vinte anos mais tarde por José Saramago em seu romance, com uma furiosa metáfora noir.  Para acirrar ainda mais essa metáfora percebida por artistas e gêneros tão dissimiles, mundo afora, em “O ataque do presente contra o resto do tempo” (1985), Alexander Kluge nos conta a estória de um diretor de cinema, cego, que durante uma filmagem obstinada roda seu mais belo filme. “O presente se enfatua. Mas sem a história pregressa e o futuro, sobretudo sob forma de oportunidade, não existe realidade – este é o ataque do presente contra o resto do tempo”, adverte Kluge na sinopse.


Spanner, o espião voyeur

Uma das estorinhas de “A Patriota” é a do personagem hilário, “Spanner” (“o tenso”), agente dos serviços de inteligência infiltrado nas multidões para espionar “atos potencialmente subversivos”. Ocorre que, à noite, Spanner atua como voyeur, bisbilhotando janelas de apartamentos à procura de mulheres nuas. Tranquila, ao invés de condenar suas práticas perversas, a heroína Gabi Teichert empresta seus ouvidos às confissões do dedo-duro. Ele lhe conta que seu grande problema é sua incapacidade de relaxar, descontrair-se. E, exatamente porque não conseguia relaxar, infelizmente, não conseguia extrair prazer do voyeurismo enquanto observava mulheres com a mesma tensão adotada durante suas missões policiais.


Hannelore Hoger em A Patriota

Qual é a graça desse personagem? Numa leitura alegórica, “tenso” é o apelido de todos nós, espectadores de cinema, que não conseguimos relaxar diante da tela e permitindo que aluviões de imagens e sons arrebentem sobre nossos sentidos, anestesiando-os. Por isso, a perspicaz Gabi Teichert sugere ao agente, dublê de voyeur, um sutil exercício de relaxamento, que consiste em certo número de piscadelas, de pestanejos, ora breves, ora mais demorados – exercício que corresponde exatamente ao processo de montagem de Kluge, quando insere espaços em preto e branco entre as cenas coloridas de um filme, por átimos rompendo a continuidade e, com a rápida brecha criada, convida o espectador para ali enxertar sua própria imaginação, que pode ser outra imagem, ou a retomada do roteiro por outras calendas.

”Somos nossa memória, esse quimérico museu de formas inconstantes, esse montão de espelhos rotos”, dizia Montaigne.

Garrafas ao mar


Não me lembro exatamente sobre o que Kluge e eu conversamos após aquela projeção. Recordo obviamente de seus modos educados, da “técnica socrática” de perguntar, curiosa e atenta ao que seu interlocutor tem para lhe contar, com personalidade aberta a tudo, ao mesmo tempo humilde e comedido, com intervenções sempre terminadas com seu imperecível “ja?” – um “não é?”, respeitoso, que pede licença para a aceitação de suas opiniões.


Estas são minhas recordações daquele encontro, mas na boca um desagradável sabor a culpa e um buraco negro em meu coração – onde estava a maldita lata com o copião, que eu não conseguira mais encontrar?


Mas então aquele telefonema - ninguém vai acreditar!


Era um sábado pela manhã, acho que foi em 2005. Alexander Kluge ligou para meu celular enquanto eu flanava pela feira do Alto da Glória, em Curitiba, o nariz enfiado, ora no meio de couves-flores, ora em pastas de berinjela... Ninguém vai acreditar, mas minha namorada de então foi minha incorruptível testemunha – Kluge ligou, sim. Ligou para lamentar que não poderia colocar no ar um filme de minha autoria (se bem recordo, era sobre a morte do marinheiro, Wilmer, nos Andes), porque, por meses, seu programa estava tomado por discussões sobre óperas, no qual o debochado e terno Heiner Müller foi um de seus entrevistados. Explicando: naqueles dias, Kluge era dono de seu muito particular canal de televisão, Dctp, sediado em Düsseldorf, de onde, como dizia, “envio mensagens em garrafas”. Frase que novamente evocou o paradeiro da lata com o copião...


À moda dos produtores tupiniquins, petulantes e soberbos, Kluge poderia sobejamente ter ignorado minha oferta, mas ligou-me num sábado pela manhã, e para o celular – não apenas o grande iluminista, mas um doce de pessoa!