03 fevereiro 2021

Frederico Füllgraf - Matou a família e foi p´ro motel, ou: Suzanne e as duas mortes do Barão Vermelho

 

(Fotos - Bundesarchiv, divulgação)

Ensaio


Quando a barra de ferro, pétrea e fria, golpeou a cabeça de Manfred von Richthofen, matando-o, naquela madrugada de novembro de 2002, um outro Manfred, também Von Richthofen, sentiu uma fisgada em sua própria cabeça, percebeu sangue brotando da cicatriz do tiro de raspão que o atingira em 1918, e revirou-se no caixão, em sua terceira cova; a de Wiesbaden. Afinal, heróis não morrem, apenas descansam, ensina a mitologia... Assim imaginei, quando li, pela primeira vez, a notícia do duplo assassinato do engenheiro alemão e sua esposa Marísia, pelas mãos de sua própria filha, Suzane von Richthofen.


Ao matar seus próprios pais, Suzane teria também assassinado a tradição cavalheiresca que adere à linhagem paterna ? Talvez Suzane estivesse farta da prosápia, contada e recontada pelo pai, que exibia suas azuladas origens na reprodução do galhario de uma frondosa árvore genealógica pendurada em uma das paredes da sala da casa do Brooklyn. Talvez Susane jamais se interessara pela estranha saga do pai, talvez lhe tenha sido ganz egal – “completamente indiferente”, como se diz em Alemão. 

Talvez...

E, se o alegado parentesco com o lendário Barão Vermelho tivesse sido apenas um delírio do pai homônimo ? Uma farsa, uma “cripta” ? Logo após o crime, a imprensa alemã – incluindo o investigativo e cáustico Der Spiegel – apressou-se em tomar por palavra final o desmentido oficial na Alemanha: “Um estudioso da saga dos Richthofen declarou que toda essa história seria uma trama urdida pela imprensa ´sensacionalista´do Brasil", escreveu, perplexo, o jornalista Cláudio Julio Tognolli, do Jornal da Tarde. Perplexo, porque, entre 1996 e 1997, árvore genealógica em punho (noblesse oblige !), o engenheiro convencera Tognolli de que, apesar de habitante da paulicéia empedrada, era sobrinho-neto do lendário e homônimo ás da aviação e pertencia de berço e de jure ao clã dos Von Richthofen, surgidos no séc. 16 nas planícies do Báltico.

Concluiu, então, Tognolli: “Do exposto, podem racionalmente pairar no ar as seguintes indagações: 1) este repórter inventou a história; 2) Manfed, num acesso delirante, daqueles que os psicanalistas chamam de delusão, inventou a história; 3) a imprensa alemã errou em dizer que a história é mentira e o especialista alemão em Barão Vermelho está mal-informado (ou: propositalmente, semeou contra-informação da família Von Richthofen, envergonhada)”.

Regredindo aos primórdios da Literatura, o psicanalista Sérgio Telles, do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo, foi buscar na matriz trágica do Édipo de Sófocles (e sua metáfora freudiana para o parricídio) elementos para a constituição do sujeito em uma “família disfuncional”. Seria “impossível conceber que a garota Von Richtofen tenha uma patologia mental tão grave, a ponto de quebrar todos os limites e expressar-se num assassinato, sem levantar a hipótese de que sua família também apresentasse grandes e graves disfunções”, argumentou Telles.

Apoiando-se no desmentido do clã, o doutor de almas precipitou-se em defender a teoria da “cripta”, para explicar o provável desvio patológico da parricida Suzane. Isto é: padecendo sob a realidade insuportável da outorga de uma falsa identidade aristocrática do pai (um segredo familiar tornado “falha”, “buraco negro”), a moça teria sido um sujeito/médium da Übertragung - a transferência da patologia paterna, segundo Freud. Telles: “No caso do engenheiro Von Richthofen, poderíamos pensar que não tolerava as próprias origens - talvez humildes, constituída de emigrantes pobres alemães, talvez colonos agrícolas - e delirava com a nobreza teutônica?” ... “Esse pai, com possíveis delírios de nobreza, receberia o fato de ter a filha um namorado pobre e humilde?”.

Da teoria da “cripta” à “apetitosa brecha defensória” para Suzane, o lapso especulativo se ampliaria: supôs Tognolli que, se os estudiosos e imprensa alemães estivessem certos ao afirmar que não havia a mínima possibilidade de parentesco entre “o nosso Manfred” e o Manfred "Barão Vermelho", os advogados da filha do engenheiro e mentora dos crimes, teriam (tido) uma carta na manga para a defesa derrubar o in dubio pro societate da promotoria. Porque, nesse caso, o engenheiro Manfred seria um psicopata, delirante a ponto de inventar uma história de vida que nunca foi sua; trauma, vilanias mentais suficientes para alterar o comportamento da filha...

“Pai com amante, mãe lésbica” ... Mais que vilãs, foram sórdidas as imputações da defesa de Suzane, para justificar o injustificável: as alterações comportamentais da parricida e matricida confessa. Contudo, os dúbios advogados evitaram puxar da carta na manga, porque não a tinham. Condenada a ré, caladas as vozes da indignação, a imprensa recolheu-se à filtragem do varejo e o “caso Richthofen” foi, literalmente, para o arquivo morto. Nele repousam, agora, dois cadáveres, duplamente assassinados, real e virtualmente: o Barão Vermelho, como paradigma da arte cavalheiresca do aviador zen, e seu parente abrasileirado, o engenheiro homônimo, colocado sob suspeita, ofendido post mortem.

No entanto, Tognolli pensou na direção correta: a imprensa alemã errou, ao dizer que a história é mentira. Mas, e o puro-sangue Karl-Friedrich Freiherr von Richthofen, “especialista alemão em Barão Vermelho”, citado por Der Spiegel: estava apenas “mal informado” ou propositalmente semeou contra-informação da família Von Richthofen (envergonhada) ? Contudo, nas praias rasas da Internet, onde apenas é requerido talento medíocre para combinar informações, pousava a esfinge que devorou o jornalismo investigativo: o site com o brasão da dinastia Richthofen (www.richthofen.de/allgemein/startseite.html)

Três anos e meio após o veemente distanciamento do Barão Karl-Friedrich, escrevi uma carta para o livro de visitas do site, perguntando, se Manfred von Richthofen, “o nosso” , era, de fato, parente legítimo da linhagem do brasão. A resposta fez-se esperar, veio de viés. Um dos von Richthofen argüiu-me por e-mail, sobre o motivo do meu interesse; “se para um romance, peça de teatro ou filme ... Menos de duas semanas depois, porém, obtive do administrador do site a confirmação da pertença do engenheiro assassinado à linhagem lendária.

Diz o e-mail de 24 de abril de 2006: Sehr geehrter Hr. Füllgraf, Bezug nehmend auf Ihre Anfrage möchte ich Ihnen mitteilen, dass Manfred Freiherr v. Richthofen Mitglied unserer Familie ist und somit auch mit dem gleichnamigen Kampfflieger des Ersten Weltkrieges verwandt ist. Den Verwandtschaftsgrad können Sie auf unserer Homepage dem Stammbaum entnehmen. Diese Stellungnahme ist vertraulich zu behandeln. Mit freundlichen Grüßen (...)

Para os incrédulos, a tradução:

“Prezado Sr. Füllgraf, com referência à sua pergunta, tenho a lhe informar que Manfred Barão von Richthofen é membro de nossa família e, com isso, também parente do homônimo aviador combatente da Primeira Guerra Mundial, ...”. E, agora a pérola: “O grau de parentesco o senhor pode deduzir da árvore genealógica que consta em nossa Homepage. A presente informação requer sigilo. Saudações cordiais (...)”.

Decidi manter em sigilo o nome do gentil informante, graduada figura do clã, reproduzir, no entanto, sua própria indicação da árvore genealógica, onde repousa a memória do engenheiro assassinado e que dispensa qualquer dúvida – genealogia por vezes glamurosa, onde figura Frieda von Richthofen, que casou com o autor de O Amante de Lady Chatterley, D.H. Lawrence, e por outras, desconcertante, na companhia do Marechal de infantaria Wolfram von Richthofen, comandante da Legião Condor, a que foi socorrer Franco durante a Guerra Civil espanhola, açougueiro de Guernica, imortalizada pelo horror das imagens de Picasso.

Campeão de equitação artística, Manfred von Richthofen, nascido em Breslau em 1892, viu na aviação do início do século passado, um sucedâneo à altura para seus anseios de glória. Trocou o cavalo pelo triplano Albatroz da Fokker. Em tempos de transição acelerada para a sociedade industrial, nada heróica, a aeronáutica logo tornou-se a arma predileta da juventude aristocrática européia. Repugnava-lhe a imagem da infantaria, do convívio, ombro a ombro, com a soldadesca nas trincheiras, em meio à lama, ao sangue, aos excrementos. Horror dos horrores, era a fantasia da morte anônima, reles número em meio à multidão de cadáveres produzidos em escala industrial.

Se Nietzsche pensou no céu como limite para seu “super-homem” (alegoria da auto-superação, nada nazista, diga-se), então os aviadores da 1ª. Guerra Mundial eram nietzscheanos do “bom combate”; aquela, herdada através das sagas medievais. Descreve um aficionado: “Os Fokker, os Sopwith Camel, os Havilland, os Nieuport que pilotavam, substituíam em definitivo as cavalgaduras. O ronco dos motores faziam com que esquecessem os relinchos. Versões modernas de Lancelote, de Orlando Furioso ou de Götz von Berlichingen, sentiam-se cavalgar Pégaso, o ginete alado”.

Em menos de três anos de guerra, a Luftwaffe do Kaiser derrubaria mais de 400 aviões ingleses. Destes, Lothar, o irmão de Manfred, piloto de um Albatroz amarelo, destruiu 40 aeronaves em apenas 70 dias de combate, por isso condecorado com a cobiçada Ordem Blauer Max (o Max em Azul). A bordo de seu Albatroz pintado de vermelho – fonte de inspiração para o personagem Snoopy e, por tabela, da banda de rock brasileira, Barão Vermelho - Manfred von Richthofen abateu 80 aviões ingleses apenas no primeiro trimestre de 1918. Comandante da esquadrilha Jasta 11 – apelidada de “O Circo Voador” , outra reverência carioca ! - von Richthofen foi idolatrado pela imprensa e o povo alemães, fazendo jus à Grande Cruz Pour le Mérite, a ordem que Frederico o Grande criara para honrar Voltaire.

Tanta idolatria por Tanatos ? Frios, quase tranquilos, Suzane e o namorado acalentaram o assassinato do casal Manfred e Marísia com um mês de antecedência, optando pelos golpes com barra de ferro depois de um teste, barulhento demais, com arma de fogo. Já o Barão Vermelho ancestral, gozou de popularidade por sua ética, traduzindo para a guerra aérea a matriz respeitosa dos cavalheiros. Jamais atirava num rival abatido que saltasse de pára-quedas, em aparelho em chamas ou embicado para o solo, dilacerado; não perseguia o piloto. “Ferido o cavalo”, deixava que o destino cuidasse do cavaleiro. Fez fama de ser leal e generoso adversário.

A “suavidade” do Barão Vermelho estimulou a fantasia no campo do inimigo, a boataria chegou a imaginar uma mulher no comando do manche do Albatroz vermelho... A propósito, um trecho do Der Rote Kampfflieger / The red air fighter, de Manfred von Richthofen, que ilustra a liça como jogo, perigoso jogo com a morte, mas respeitoso, guerra “humanizada” , longe da artilharia pesada, da metralhadora, do lança-chamas e do gás mostarda, praticada sem traição ou perfídia:

“Depois de termos baixado mais de dois mil metros em nossa altitude, o que não mudou nada nossa situação, meu adversário finalmente teve que admitir que já passava da hora escafede-ser, pois o vento favorável me transportava cada vez mais perto das nossas posições, fazendo-me planar quase sobre Bapaume, distante um quilômetro do nosso front. Quando nos encontrávamos já a apenas mil metros acima do chão, meu adversário ainda teve tempo de me acenar, muito divertido, como se quisesse dizer: „Well, well, how do you do?" (Tudo beleza, como vai você ?).

Como questiona Geoffrey Miller, em "Sabretache", the Journal and Proceedings of the Military History Society of Australia, Vol. XXXIX, No. 2, junho de 1998, quase noventa anos após a morte do Barão Vermelho, em 21 de abril de 1818, nos céus da França, os descendentes de soldados ingleses, canadenses e australianos ainda discutem, quem foi o autor do disparo, que derrubou o lendário Fokker Albatroz.

Manfred von Richthofen foi sepultado por seus inimigos. Reservaram uma grande barraca de campanha, em cujo centro ergueram um pedestal e, sobre este, repousaram o caixão do barão, vestindo o mesmo uniforme do regimento l -Ulanen, que trajava quando caiu no buraco negro que o arrancou da vida. Seis oficiais da aeronáutica inglesa, todos capitães de esquadrilha, dinstinguidos por sua bravura diante do inimigo, penetraram na barraca, alçaram o caixão ao ombro e o carregaram até sua primeira sepultura, no cemitério de Fricourt. Seguindo o caixão, marchavam doze homens da guarda de luto, olhos derramados sobre o chão, segurando seus mosquetões com o cano virado para baixo.

Depois desta formação, marchavam oficiais e suboficiais, entre eles cinqüenta aviadores. E todos caminharam atrás do féretro, em silêncio, olhos para o chão. Fechando a coluna, um dos oficiais carregava uma grande coroa com a saudação do quartel-general da aeronáutica inglesa para o barão: „ Ao Cavalheiro von Richthofen, o valente e digno inimigo“. Sobre o caixão, martelaram uma placa metálica, com dístico em Inglês e Alemão: "Aqui, sobre o campo da Honra, descansa o Cavaleiro Manfred, Barão von Richthofen, na idade dos 25 anos, caído em batalha aérea em 21 de abril de 1918“. Enquanto o caixão descia à terra, aviões ingleses fizeram formação de honra, com rasantes sobre o cemitério. Em 1925 os restos mortais do Barão Vermelho foram transferidos por sua família para o aristocrático cemitério dos Inválidos, no coração de Berlim, onde Manfred jazia exatamente debaixo do Muro, erguido em 1961, motivo pelo qual em 1976 seus descendentes o transladaram mais uma vez de morada; desta última, para Wiesbaden, às margens do Reno.

Já a louraça bandida (Alberto Dines) confessou que estava “emaconhada” na noite em que matou a mãe e o pai. Não era cocaína, era uma droga "leve", dessas disponíveis em qualquer festa, não fora a primeira vez. 

Matou a família e foi ao motel...