14 dezembro 2019

Frederico Füllgraf - Patagônia, viagem ao começo e fim de mundo - Parte 2

  


Crônica de viagem

Finnis Terrae!

Debaixo das asas do avião, o continente sul-americano vai adelgaçando até o encontro do Atlântico e da Cordilheira, na Terra do Fogo; encontro que provoca o grande choque dos elementos.

Em Ushuaia o tempo pode mudar oito vezes ao dia. Terra de extremos, a Patagônia fueguina só conseguiu atrair e fixar a colonização europeia no final do séc. 19. Até lá, o fim do mundo estava na lista negra da Igreja e da antropologia etnocêntricas. 

Conta-se que após a divulgação da descoberta, por Fernão de Magalhãe, do estreito que leva o seu nome, a Igreja em Roma proscreveu os índios fueguinos, pois homens que viviam numa terra onde as árvores cresciam "para baixo" e a chuva e a neve caíam "para cima", não poderiam, em hipótese alguma, ser admitidos como descendentes dos primeiros pecadores, Adão e Eva – provavelmente sequer tinham alma... Era este o “mapa mundi” invertido na cabeça dos clérigos, tão criativamente ironizado 500 anos mais tarde, no mapa "de pernas para o ar", do artista uruguaio, José Torres-Garcia. 

O reforço desta maldição veio pela boca de sir Charles Darwin, autor da frase sem nenhum rigor científico, e por isso tristemente famosa: "A maldição e a esterilidade pesam sobre este país, e a água que desliza sobre seu leito de pedras, é parte da mesma maldição".


Ushuaia é cenário de experiências que vão da surpresa ao grotesco, passando pelo desconcertante. 

Por acaso existe experiência mais hilariante que chegar ao próprio “fim do mundo”? Que acena em todas as esquinas: Café do Fim do Mundo, World's End - a boutique do fim do mundo, o Museu do Fim do Mundo, o amor feito no fim do Mundo... Desconcertante não é apenas esta permanente simultaneidade da gênese e do apocalipse do espaço continental, planetário, mas também da concomitância dos tempos, onde convivem a paisagem mesozóica com o Cyber-Café.


Uma atração risível são as casas de Ushuaia: imensas casinhas-de-boneca de latão colorido, desafiando o céu, quase sempre encoberto. Exibem influências de estilo britânico e italiano, que o viajante já conhece da Boca, em Buenos Aires. As mais antigas, são construídas em madeira, com isolamento externo de latão, liso. Suas paredes internas são de madeira, isolada com papel de jornal, e coberta com papel de parede. Revelação insólita: a explosão demográfica ocorre até no fim do mundo. O "Plano de Promoção" do governo argentino, que na década de 70 atraiu dezenas de indústrias (desativadas após a extinção dos incentivos fiscais dos anos 90), fez Ushuaia inchar de 5.600 para 29.500 habitantes.

A (suposta) cela de Gardel

Na Prisão do Fim do Mundo, espécie de "Alcatraz finnis terrae", construída pelos próprios prisioneiros no início do século 20, desativada na década dos anos 40, e reciclada como museu vivo, testemunhei a morte cruel dos meus dois maiores heróis argentinos: Eva Perón e Carlos Gardel. 

Primeiro, porque Alan Parker e Madonna assassinaram "Evita" no "Cine del Fin del Mundo", uma gigantesca tenda metálica intra-muros da ex-penitenciária, parecida com as cabanas das bases científicas da Antártida. Quando Evita-Madonna, apelou, moribunda, "Não chores por mim, Argentina", o público respondeu com desdém, e subitamente a maldição de Darwin parecia virar-se contra o próprio "império do mal"; o britânico. Depois, uma placa espúria, mas genuinamente argentina, fulminaria Gardel à entrada de um cubículo úmido e escuro, com a seguinte insinuação: "¿Uruguayo o francés ? ¿ Estuvo o no, preso en esta cárcel ?"

Era tarde demais para sussurrar "No habrá pena ni olvido": minha imagem de Carlitos jazia no chão de paralelepípedos puídos pela História. Aproximei-me do infame sumário e li boquiaberto: entre as versões sobre os motivos da prisão de Gardel em Ushuaia, constam "envolvimento com mulheres, política e alcagüetagem", confusões que culminaram em tiroteio. Daí, sua prisão no fim do mundo. E lá, sua redenção. Na prisão, Gardel reinventou-se como payador (milongueiro gauchesco) antes de decolar sua carreira de tanguero e ter as Américas a seus pés. Autos, sentenças e prontuários enviados de Ushuaia a Buenos Aires, "perderam-se" nos porões da antiga Penitenciária, na esquina das avenidas Coronel Díaz e Las Heras, em tempo para evitar embaraços à carreira de Gardel. Aliás, Charles Romuald Gardés: ídolo nacional argentino, nascido no Uruguai, de pai supostamente francês, e morto em acidente aéreo na Colômbia. Assim é Ushuaia: o fim do mundo é um demolidor de mitos - ou será que ele é seu arquiteto, dando-lhes corpo e sabor?


Na "Estação do Fim do Mundo", em Ushuaia, sobe-se a bordo do trenzinho com a bitola mais estreita ainda que a do "Viejo Expreso Patagónico", de Esquel, e durante uma hora passeia-se por um cenário hilariante: um século atrás, a floresta austral foi derrubada pelos prisioneiros para a construção da penitenciária e das primeiras casas de Ushuaia. "O que não foi derrubado, foi queimado pelas fagulhas do próprio trem", explica, resignado, o guia turístico. Depois, o último trecho do parque é feito por ônibus, que faz uma parada como se fosse para alardear um "SOS Mata Fueguina!". Ansiosa em re-povoar suas florestas do fim do mundo com fauna de clima frio, no princípio do séc. 20 a Argentina precipitou-se, comprando gato por lebre: importou castores norte-americanos, que não encontrando seu predador natural - o puma ou jaguar pardo, virtualmente extinto - estão devastando o bosque austral com sua fúria de construtores de diques, para isso juntando toras e galhada, onde alojam suas tocas. Desinteressados, até mesmo os zorros, os cachorros do mato patagônicos, pelos simpáticos e aplicados roedores, não restará outra alternativa à autoridade finismundi que declarar aberta a temporada de caça ao castor, transformando-a em insólita mas incontestável atração eco-turística internacional: "Mate um castor, salve a floresta e ganhe o Troféu Finisterre!" – é o fim do mundo!


Última parada antes do transbordo para um barco na Bahia de Lapataia, um lago provoca um choque estético. Recortado de sonhos, emergindo dos labirintos do inconsciente, lá está o perfeito cartão postal hiperreal, imobilizando a imaginação: o Lago Roca.

O farol de Jules Verne


A esta altura, chegamos ao Canal de Beagle, e nevegá-lo significa experimentar outra emoção desconhecida. 

Escoltado à direita e à esquerda pelas últimas formações montanhosas do continente, o Beagle acompanha a Cordilheira dos Andes até sua morte no mar. Morte é uma palavra que ganha muito sentido neste lugar, pois muito sangue juntou-se às águas de cor esmeralda do Canal desde que o homem branco aportou por aqui, 120 anos atrás. 

A cultura dos índios-canoeiros, Ona, extinguiu-se em menos de duas gerações, porque a Europa depredou sua principal dieta alimentar; os leões marinhos. Destroços e fotos de navios baleeiros, no Museu do Fim do Mundo, também documentam um dos capítulos mais sinistros do saque biológico das Américas pela Europa: a caça inclemente e economicamente burra à Baleia Franca Austral.



Na saída do Canal de Beagle para o nada, está Les Eclaireurs, o "farol da luz no fim do mundo". 

Como Jules Verne nunca freqüentou estas derradeiras paragens, sua novela "O Farol do fim do Mundo" certamente se inspirou no relato de algum marinheiro viajado.

Les Eclaireurs é o ícone da solidão. E silêncio e solidão são os grandes aprendizados da alma do viajante neste fim de mundo. O silêncio e aquele desconcertante sentimento de pertença ancestral, são os temas do romance Mundo del Fin del Mundo, do chileno Luis Sepúlveda, cujo personagem-narrador traduz a universalidade destes sentimentos, nada boçais, apenas demasiadamente humanos, quando escreve:


"Agora eu sentia que eu também era de algum lugar. Finalmente sentia o chamado mais poderoso que o convite da tribo; este, que a gente ouve ou crê escutar, ou o inventa, como paliativo da solidão (...) Sob a abóbada de milhares de estrelas, que testemunhavam a frágil e efêmera existência humana, eu soube, finalmente, que era dali, e que ... levaria sempre comigo os elementos daquela paz, terrível e violenta, precursora de todos os milagres e de todas as catástrofes. Naquela noite, sentado no convés do Finisterre, chorei sem dar-me conta. Não era pelas baleias. Chorei, porque estava de novo em casa (...)."


Gauchito Gil, Defunta Correa e as árvores petrificadas


Já de volta a Comodoro Rivadavia, e de lá tomando a estrada rumo a Esquel, é possível ter um encontro intrigante, não marcado, com um ícone da religiosidade popular. 

Plantado desafiadoramente em pleno deserto, está um misto de altar e oratório, composto por capelinhas de madeira, de cor vermelha, e cheias de votos - garrafas d'água, velas, ervas -, ladeadas por três bandeirolas fincadas no chão, de trapos esgarçados pelo vento, também vermelhos, e uma cruz com uma tabuleta - sempre vermelhas - ofertados ao "Gauchito Gil", a quem seus devotos pedem proteção. 

Minha cabeça tenta entender, mas o resto do meu corpo apenas sente. E eis a dúvida: será mesmo uma forte energia que emana deste lugar sincrético, ou é o vazio territorial, com sua imensa solidão, que me invade sob forma de percepção "religiosa"? 

É uma experiência que evoca imediata associação aos surtos místicos descritos por Isabelle Eberhardt, a filha de Rimbaud, travestida de homem, enquanto atravessava o Magreb, montada em corcovas de camelo.  Já este culto patagônico originou-se em Cuyo, noroeste da Argentina, em homenagem à "Defunta Correa". 

Segundo a lenda que a declara santa, a personagem teria conseguido amamentar seu filho durante vários dias após sua morte por sede, no deserto.


Em Sarmiento, no coração do deserto, 130 milhões de anos do planeta Terra parecem codificados no "Bosque Petrificado", localizado à entrada do tenebroso - ensolarado, sim, mas tenebroso - "Vale da Lua". Gravado a cores em estratificações de idade geológica embasbacante, um inquietante criptograma de arenito e rocha magmática apresenta-se aos olhos assombrados. Este contato com os proto-elementos, sua pétrea beleza e a incomensurabilidade do tempo, potenciam o estupor psicológico, experimentado no contato com o silêncio do deserto. 

Feito peixes fora d´água, agonizantes, troncos jurássicos, estraçalhados pelas intempéries, jazem no chão de cinza vulcânica. Sua escamação quer indicar que só agora ingressaram em estágio de demorada morte mineral, até sua pulverização. 

Na saída do Vale são quase nove horas da noite.
Sol de fogo, a oeste, e lua pálida de susto, a leste, surpreendem-se, cara a cara – o espetáculo é ambivalente e a alma não sabe decidir a qual dos dois entregar-se.


Um cavalo heróico e um escritor mentiroso

 
Etta Place, bela e bandida


Esquel é a porta de entrada do Parque Nacional de los Alerces, a poucos quilômetros de Trevelin, o bastião avançado da colonização galesa ao pé dos Andes. 

Aqui é fácil entender uma antiga, mas falsa indignação do Chile. Foi graças a um plebiscito realizado entre os galeses, no final do séc. 19, que toda esta região, povoada, sobretudo, por índios araucanos (Mapuches) do Chile, que fugiram à expansão do império Inca, atravessando os Andes, foi incorporada à Argentina, depois de espertamente "anexada" por estancieiros chilenos, que seguiam as pegadas dos nativos exilados. Só mediante a convocação de uma comissão internacional de arbitragem é que o Chile reconheceu finalmente que as terras argentinas eram as que se localizavam a leste das nascentes andinas, correspondendo-lhe apenas as localizadas a oeste, de frente para o Pacífico.


Mas a atração imperdível de Trevelin é a "Tumba do Cavalo Malacara". 

Sepultado ao lado de seu dono, o pioneiro galês John Daniel Evans, a quem serviu durante trinta anos, o Malacara é venerado como atração turística por Clery Evans, neta do pioneiro. 

Recebendo seus visitantes na casa do avô, transformada em museu particular, Clery reconstitui o drama dos quatro bravos galeses, que em 1879 cavalgaram de Rawson, na costa atlântica, até os Andes, e que na volta foram emboscados por índios, que os confundiram com soldados do General Julio Roca. O único que se salvara foi John D. Evans, porque o Malacara teve a audácia de saltar de um precipício com quase 20 m de altura e escapar – vivo! Inteirado da morte dos três companheiros de Evans, o cacique Tehuelche veio ter com Evans, desculpar-se. Só depois deste incidente o governo argentino enviou seu primeiro destacamento militar aos Andes, e deu posse de terra, até então “chilena”, aos galeses. Moral da estória: não fosse um cavalo, e o mapa da América do Sul teria outro traçado.


Outra nota de rodapé da História, desta vez do crime, foi escrita em Cholila, povoado do setor nordeste do parque. 

Há lá uma atração só recentemente incorporada aos roteiros turísticos, da qual anteriormente o país preferia não vangloriar-se: uma cabana que, de 1901 a 1907, serviu como sede da fazenda comprada pelo "Wild Bunch", o quarteto mais procurado pela justiça norte-americana na virada do séc. 19. 

Após memoráveis assaltos a trens e bancos, nos EUA, Robert Parker (aliás Butch Cassidy), Harry Longabaugh (aliás Sundance Kid, já imortalizado por Robert Redford), e a bela pistoleira, digo professora, Etha (Ethel) Place, fugiram para a Argentina, fixando-se em Cholila. Harvey Logan, o quarto elemento do bando, ainda cumpria pena nos EUA, chegando a Cholila somente em 1905.


Conta-se que, com a chegada de Logan o bando retomara sua trajetória criminosa, assaltando bancos no sul da Patagônia. Num desses assaltos, Logan teria baleado mortalmente o gerente de um banco, violando o código de ética da quadrilha, que rejeitava mortes. E este teria sido o fim do breve interregno de paz do Wild Bunch, que novamente caçado, teria cruzado a Cordilheira dos Andes, em direção ao Chile, onde suas pistas foram engolidas, em 1907. 

O ex-general boliviano, René Barrientos - matador de Che Guevara e estudioso obsessivo do gênero western, mas descrente da lenda, segundo a qual o bando teria sido morto em 1909, durante um assalto à mina de zinco San Vicente, na Bolíviam - realizou uma investigação que confirmaria as suspeitas da agência de detetives Pinkerton, dos EUA: "foi tudo armação!", afirma Barrientos. Segundo Pinkerton e Barrientos, pelo menos Cassidy, e antes dele, Etha Place, teriam conseguido salvar sua pele, retornando clandestinamente aos EUA. Ainda segundo a irmã de Cassidy, viveram incólumes, e suas carreiras tiveram um happy end.


Mas esta é apenas uma de várias versões desencontradas, cujo objetivo é pintar o ocaso da quadrilha com vernizes de glamourização. 

No início do novo milênio, estudiosos da aventura de Cassidy e do Sundance Kid, reuniram-se em barulhento congresso internacional, no sul da Patagônia. E nesta oportunidade fizeram um enérgico acerto de contas com o finado Charwin, ao qual, segundo o pesquisador Negro Suárez, "a única coisa que lhe importava ao escrever, era que sua estória fosse eficaz”. Juárez confirma que aqueles túmulos encontrados em Río Pico, não são, como afirmou Chatwin, as tumbas de Butch e Sundance. Como de resto, aliás, Chatwin tomou ousadas liberdades poéticas, estacionando na paisagem patagônica múltiplos objetos de sua imaginação.


El Viejo Expreso Patagonico


Em Esquel sobram restos do Expresso Patagônico do final do séc. 19.

Romantismo à la "velho oeste", aqui superado pela paisagem jurássica e selvagem do deserto de Chubut, é o que proporciona uma viagem com seis horas de duração a bordo do "Viejo Expreso Patagonico", versão mirim do antigo trem.

Os Guanacos da planície parecem divertir-se com sua passagem, aguardando o comboio à beira dos trilhos, para então dispararem em debandada quando ele se aproxima, tossindo vapor e cuspindo fumaça negra. 

Hoje, o que resta da lendária estrada-de-ferro de 450 km, que servia de meio de transporte entre as fazendas dos criadores de ovelhas, no oeste patagônio e a costa atlântica, é o trecho de 165 km, entre Esquel e El Maitén. Uma vez por semana, e para o deleite de turistas de todo o mundo, "La Trochita" - assim chamado devido à sua bitolinha de 0,75 cm de largura - arrasta-se ofegante durante seis horas pela mais árida e instigante paisagem patagônica. Suas locomotivas belgas, ou norte-americanas, da década dos anos 1920, consomem 2 mil litros de água em cada 40 km rodados, o que obriga a Trochita a fazer quatro paradas de reabastecimento no trajeto. Já as velhas Henschel, alemãs, foram aposentadas no "cemitério de trens", o ramal morto de El Maiten.


Impulsionado pelos ventos neoliberais, do quanto menos Estado, melhor, o Governo Menem tentara paralisar a linha, "deficitária", mas os bravos ferroviários patagônicos se rebelaram, assumindo o serviço em regime de auto-gestão, no que foram aplaudidos por turistas dos quatro cantos do planeta, e pelos paysanos e suas famílias, que dele necessitam para se locomoverem na paisagem.


Parque de los Alerces

Mas incorre-se em pecado imperdoável, despedir-se de Esquel sem visitar o  Parque Nacional de los Alerces, com 263 mil hectares, localizado entre Esquel e o Vale de Bolsón. 

As árvores, que lhe dão o nome chegam a atingir 3,5 m de diâmetro, 60 m de altura, e idades superiores aos 3 mil anos. Sua concentração maior é no Lago Menéndez, podendo-se, porém, abraçar exemplares isolados às margens do Lago Futalaufquen, o primeiro a ser alcançado por quem vem de Esquel. Os dois lagos são os maiores e mais bonitos de um complexo sistema lagunar que origina o Rio Futaleufu, em plena Cordilheria dos Andes. Este atravessa a cordilheira em sentido leste-oeste e desemboca no Oceano Pacífico, aqui tão próximo quanto o próprio Chile, para o qual conduzem vários pasos através das montanhas.


O Lago Futalaufquen é o mais belo. Encontra-se ao sul do Lago Menéndez, ao qual está ligado pelo Rio Arrayanes. 

O céu diáfano da Cordilheira e os minerais de seu leito concorrem para a definição de seu matiz azul leitoso. Grande número de enseadas com pequenas praias lastradas de seixos, seduzem para um banho, pelo menos um mergulho em suas águas – é vão o esforço do sol em aquecê-las, pois sua temperatura média, no verão, não ultrapassa os 5 graus centígrados. 

O Arrayanes encontra-se no braço nordeste do Futalaufquen, o Rio que o visitante cruza sobre uma a ponte pênsil, caminhando no máximo 40 minutos até o Lago Menendez. Após Puerto Chacao, de onde partem os barcos para o tour dos lagos, chega-se ao mirante com a deslumbrante vista para as geleiras do Cerro Torrecillas.  É possível fazer todo o roteiro Trevelin-Expreso Patagonico-Parque Nacional de los Alerces em três, no máximo, quatro dias, com alojamento-base em Esquel, onde o visitante encontrará confortáveis chalés - aqui chamados de cabanãs - de dois pisos, a preços acessíveis.

Os novos donos do fim do mundo

Última etapa andina de um roteiro de mais de 6.500 quilômetros rodados em carro, está o segmento Esquel-El Bolsón-Bariloche, pela RN 258 asfaltada, cujos 280 km bordejados de altas montanhas e lagos, lembram cenários do Vale d'Aosta alpino, entre a Suíça, a Itália e a França. 

Região de forte tradição indígena, a Bacia do Lago Nahuel Huapi foi ocupada pelo homem branco (espanhóis e alemães, sobretudo) apenas no final do séc. 19. Sua arquitetura e seu paisagismo não conseguem esconder intenções e tentativas de seus colonizadores, em domesticar um cenário andino, impregnando-o com matizes europeus.

As culturas pré-e pós-colombianas aqui não sobrevivem, são apenas lembradas por nomes e marcos tão melodiosos como Nahuel Huapi, "o lago dos Tigres". 

Misto de Lago Lemans e Tizzino, Lago Garda e Saint Maurice, Bariloche já tosse sufocada sob o impacto dos 500 mil turistas anuais, que para cá são atraídos por paisagens capazes de empalidecer a Europa de inveja, com serviços do topo do ranking de qualidade internacional. 

Feito mosteiro budista incrustado nas escarpas do Tibet, está o Hotel Llao Llao plantado sobre uma península de frente para o Parque Nacional de Nahuel Huapi. Templo do moderno recondicionamento de habitantes urbanos, endinheirados e estressados de todo o mundo, o Llao Llao não oferece apenas esportes (golf, paddle, caça, pesca, mountain bike, rafting, trekking), mas também os curativos para estas provas de resistência: piscina climatizada, sauna, hidromassagem, banho de vapor com aroma-terapia, oxigenação com creme de ervas, hidratação com soros marinhos, ampolas com frutas e flores, máscaras hidratantes, tonificantes, revitalizantes, remineralizantes, bio-reestruturação facial - um programa, enfim, que faz da Cordilheira dos Andes a "nova fonte da juventude".


Eis, pois, a promessa da "vida eterna", que o mega-especulador planetário, George Soros, percebeu como fonte de negócios, adquirindo em torno de 1,0 milhão de hectares, e por tabela o Resort Llao Llao. 

Condenado à prisão pela Justiça Francesa, e com processo pendente na Corte Européia, acusado de crimes de guerra no Vietnã, no Camboja, e por incentivar os golpes militares no Chile e na Argentina, de 1973 e 1976, outro que se refugia ao pé da Cordilheira, em Bariloche, é o Dr. Henry, aliás Henry Alfred Kissinger, ex-ministro do Exterior de Richard Nixon. Mas antes de Soros e Kissinger, viera a dinastia Benetton – o maior grupo latifundiário do finis terrae, com sede em El Maitén  - e depois dela chegaram Ted Turner (ex-CNN), e o mega-comprador de terras Douglas Tompkins – todos comprometidos com a “conservação ambiental” da Patagônia. 

E que Deus lhes cobre, porque

"o Homem destrói, quando acha o que procurava"
(Hans Magnus Enzensberger, escritor e ensaísta alemão)

(Ilustrações: taringa.net; interpatagonia; descubrepatagonia.com/)

Frederico Füllgraf - Patagônia, viagem ao começo e ao fim de mundo - Parte 1

 
(fotos: divulgação)

Crônica de viagem


Para Liége dos Santos, 
companheira dessa inspiradora jornada austral.



A Patagônia é um mito, foi e será território alimentador de mitos. Para mim, até o dia da minha primeira incursão, foi sempre território imaginário, tão distante, misterioso e intangivel como o Grande Deserto da Austrália ou a Ferrovia Transsiberiana, com alguma aura mal afamada de Velho Oeste, isto é: natureza em estado bruto, terra de ninguém, terra sem lei, arrancada aos povos autóctones ao custo de desmedida truculência. E com uma história escrita pelos vencedores. Há muito tempo eu sentia uma espécie de "chamamento", e à medida que fui me internando no território que o espelha, o das narrativas, entendi que esse "chamamento" impulsionou todos os que baixaram a estas terras inóspitas. Como diz Guillermo Saccomano, ensaísta argentino (Narrar al sur) exploradores espanhóis e holandeses, naturalistas ingleses e franceses, religiosos italianos, colonos galeses, estrategistas argentinos e milionários norte-americanos parecem ter coincidido, ao longo de quase cinco séculos, de que ali está o que buscavam: um território geo-estratégico, a chave para desvendar uma charada científica, um recurso natural e uma beleza extasiante que vão se extinguindo no resto do planeta, uma "cidade encantada", na qual abunda o ouro, e também certa noção da "eternidade", que já não espanta mais ninguém.


Embora os 700 mil km2 da Patagônia oriental (argentina) atualmente não abriguem mais de 1,0 milhão de moradores, seu território-país já é citado por Antonio Pigafetta, escrivão-de-bordo de Fernão de Magalhães, durante a circunavegação do estreito homônimo, menos de trinta anos após a “descoberta” do Brasil. E o apressado Pigafetta é o (ir)responsável por grande parte da mistificação etnográfica e paisagística que definirá a historiografia deste mundo finis terre, já que o nome Patagônia remonta à etimologia “patagones” (= pés grandes), que o cronista italiano concedeu aos primeiros índios avistados. Melhor: imaginados pelos espanhóis, porque das grandes pegadas, marcadas na areia de algumas praias, os navegadores teceram logo associações com o tamanho dos pés, e outros membros de seus titulares.

Quando, porém, o primeiro índio Tehuelche subiu a bordo de uma das caravelas, desatando os nós do grande pedaço de couro de camelídeo que usava para proteger-se do frio, o estrago já estava feito, digo, Caliban já estava incorrigivelmente descaracterizado e batizado. Daí, à crença de que neste fim de mundo as árvores nasciam com as raízes para o céu, e os rios corriam cordilheira acima, foi um passo no imaginário quinhentista - motivo pelo qual nos mapas renscentistas o mundo ao sul do Equador figurava de ponta-cabeça, e o Papa relutava em aceitar a humanidade de seus habitantes bárbaros - vai ver, tinham as vergonhas fora do lugar!




E começa a viagem
Naturalmente, de qualquer parte do planeta pode-se alcançar distintos pontos da Patagônia de avião, mas neste caso ela se se esconde. não se revela. Eu fiz a viagem de carro, a partir de Buenos Aires, descendo a costa atlântica, e retornando pela Cordilheira dos Andes. 

Geógrafos e geólogos brigaram durante um século inteiro, até definirem o mapa da atual Patagônia, compartilhada pela Argentina e pelo Chile. 

Do ponto de vista físico, ela compreende, na Argentina, o imenso território de 800 mil km2 ao sul dos Rios Limay e Colorado, estabelecendo uma fronteira ecossistêmica com a pampa, ao norte e, em sentido oposto, derramando-se até a Terra do Fogo e o Canal de Beagle, no sul. Em sentido leste-oeste, a Patagônia Argentina, ou Oriental, esparrama-se desde o Oceano Atlântico (com 1.770 km de costa) até a Cordilheira dos Andes (com 1.920 km de cadeias montanhosas), sobre o território das províncias de Neuquén, Rio Negro, Chubut, Santa Cruz e Terra do Fogo & Antártida. Em território chileno, a Patagônia estende-se da província de Aysén, ao norte, até o Estreito de Magalhães, no extremo sul. Geograficamente, portanto, aproximadamente dois terços da Patagônia encontram-se em território argentino e um terço em território chileno.


Nas pistas de Darwin, Tschifelly e Chatwin


Aimé Tschiffelly

Meu primeiro olhar sobre a Patagônia foi guiado por Liége Santos - namorada, com quem dividi o volante do carro - e um estrangeiro, o escocês Bruce Chatwin. 

Depois de ler sua crônica "In Patagonia" – espécie de narrativa “cubista”, como pretendia seu autor, mas aceita com muitas reservas na Argentina - a viagem para o subcontinente fantástico era apenas uma questão de tempo. Apesar da abordagem "novelesca" e deformadora do observado por Chatwin, emocionou-me seu despojamento, determinado a percorrer o inóspito a bordo de desconfortáveis trens, ônibus, ou como carona de caminhoneiros, em meados da década dos 70.

Nesta primeira incursão, Liége e eu iniciamos nosso roteiro a bordo de um atrevido fordinho Fiesta (o jeep 4x4 que havíamos encomendado por fax, já havia sido alugado), baixando a costa atlântica pela Ruta Nacional (RN3), que desde Buenos Aires cruza 700 km do pampa até Bahia Blanca. E aqui, sem sabê-lo ainda, nos internamos no território de um viajante mais antigo: a rota costeira descrita em "Sur" (This way southward;: A journey through Patagonia and Tierra de Fuego), do suíço Aimée Félix Tschiffely. 


Professor de matemática em escolas britânicas na Argentina da década dos anos 20, e viajante obsessivo, Tschiffely quebrara o recorde mundial com uma cavalgada com duração de três anos, de Buenos Aires até o centro de Manhattan, em Nova York. De volta daquela odisseia, já em 1936 decidiu embrenhar-se em sentido oposto, rumo à Patagônia.



Contudo, a "monotonia estranhamente maravilhosa" do pampa de Tschiffely estava fora de lugar. 

Os românticos boliches (botequins) foram substituídos pelos Cafés ou lojas de conveniência 24 horas, arranjados e decorados segundo o figurino globalizado, mas permanecera o hábito dos nativos de comer uma parillada, o churrasco argentino, que à beira da RN3 é servido ao lado de quase todos os postos de gasolina, como em Azul. Aqui, debruçado sobre o mapa rodoviário, cujo labirinto tentávamos decifrar, fomos invadidos pela doce indiscrição de um nativo e sua família que, preocupados em apontar-nos o caminho correto, enterrariam para sempre o preconceito brasileiro do "argentino descortês": em seu carro nos "escoltaram" até o primeiro cruzamento, para evitar que fôssemos desviados para Bariloche. E nos mandaram abraços e beijos; obviamente retribuídos.


O aprendizado das cores


Até a Sierra de la Ventana, tudo parece encaixar ou perder-se harmonicamente no imenso tapete verde, até que numa curva inopinada surge do nada um grande "remendo" amarelo de girassóis translúcidos, dando as costas ao poente - Van Gogh que nos perdoe, mas os girassóis do pampa são mais luminosos que os da Holanda! Principalmente quando projetados contra a abóbada celeste, de matiz azul diáfano, com suas bizarras formações de nuvens comprimidas ou rasgadas pelo vento, que já sopra forte. 

Gaviões e falcões são freqüentes companheiros de estrada, voando em círculos elegantes até - pasme-se! - serem caçados por bandos de valentes andorinhas. 

Bahia Blanca, ruidoso centro provinciano de 500 mil habitantes, no extremo sudoeste da província de Buenos Aires, mantém abertas as feridas de uma Argentina outrora pujante. Seu mais alto índice de desemprego do país, e a miséria em sua periferia escondem gloriosos tempos que não voltam mais. No decadente, mas charmoso salão do Hotel Muñiz, ainda é possível respirar lufadas imaginárias das glamourosas décadas de 1930 e 1940, quando este era o ponto de animadas tertúlias de ricos estancieiros e exportadores de lã e frutas; as “manzanas de Rio Negro” de nossas infâncias.

De Bahia Blanca a Viedma são outros 300 km, com a travessia da província de Buenos Aires para a de Rio Negro, e o cruzamento da desembocadura do Rio Colorado; a fronteira molhada do norte da Patagônia. 

Aqui o viajante tem duas opções: seguir pela RN 3, cortando caminho até San Antonio Oeste, no Golfo de San Matias, ou tomar a Ruta Provincial (RP) 1, acompanhando o Rio Negro até sua desembocadura no Atlântico, em El Pesadero. 

Foi o que fizemos. Distante 65 km de Viedma, alcança-se a lobería (reserva de leões ou lobos marinhos) Punta Bermeja, onde termina o asfalto da RP 1, devendo-se percorrer aproximadamente 180 km de estrada de rípio (cascalho e muito pó) para chegar-se ao trevo rodoviário de San Antonio Oeste, com o reingresso na RN 3.

E no meio do caminho, lá estava a deslumbrante Bahia Creek, paisagem escarpada com praias desertas de areia negra, vulcânica. Refúgio que incita ao recolhimento contemplativo, Bahia Creek é a iniciação do viajante no aprendizado das cores da Patagônia, cujos espectro e matizes não existem sob o céu tropical. A magia do pôr-do-sol insistia em deixar marcas para o resto da vida. Ela, a namorada, tirou a roupa, desnudando-se; sua pele acariciada pelos últimos raios de sol, beijada pela maresia gelada e pintada com as cores de um arco-íris austral - olhos grandes e suspiros de deslumbramento no meio do público admirador das fotos...

Percorridos à noite e sem a devida atenção ao nível do combustível, os 180 km restantes da RP 1, podem transformar-se em pesadelo, pois até San Antonio Oeste não há postos de gasolina, nem mesmo viv'alma que possa prestar auxílio. 

A única atração desta pacata cidadezinha de 11 mil habitantes é a Praia de Las Grutas, que por sua localização no saco do Golfo San Matias, tem as águas oceânicas mais quentes e transparentes da Argentina, próprias para o mergulho. A curiosidade histórica é que em seu apogeu San Antonio Oeste foi o entroncamento da Rede Ferroviária Federal Argentina (Km Zero: Plaza Constitución, Buenos Aires) com a Ferrovia da Patagônia, iniciada aqui em 1908, e concluída em San Carlos de Bariloche em 1934, tornando-se o principal porto de exportação da cobiçada lã dos rebanhos ovinos da Argentina.


El Desierto

O ingresso na Estepe Arbustiva Patagonica, popularmente conhecida por el desierto, é um vislumbre de eternidade. 

Contudo, quando a viu em 1832, Charles Darwin disse: “terra maldita!”. Muito depois admitiu seu arrebatamento. Já Guillermo H. Hudson, argentino de origem também inglesa, visita a Patagônia em 1860. Em seu livro, "Días de ocio en la Patagonia", tenta fazer Darwin entender "que viajantes do deserto descobrem em si mesmos uma calma primordial (familiar ao mais simples dos selvagens), que talvez seja o mesmo que a Paz de Deus..."


Partindo de San Antonio Oeste rumo a Puerto Madryn, 250 Km ao sul, é esta a paisagem majestosa, misteriosa e sobretudo digna, que acompanha o contorno do Golfo San Matias. 

É o fim da tonalidade verde. Em seu lugar, desdobra-se um infindável tapete incendiado de manchas, nas tonalidades amarela, mostarda, salmão, ocre, bordô e sépia, refletidas por plantas de nomes exóticos como molinum spinosum, xerófilos, poa , festuca e stipa. São as únicas espécies vegetais capazes de oferecer resistência às brutais intempéries da estepe; o sol inclemente, as nevascas do longo inverno, as rajadas do vento incessante.


A "península grávida"


A 20 Km de Puerto Madryn está o acesso à Península Valdés, santuário da fauna marinha, único no mundo. Valdés é uma experiência inesquecível, que rompeu as fronteiras da Argentina e ganhou continentes. As baleais Franca Austral (12-16m), os elefantes marinhos (machos: até 4.0 t de peso), os leões marinhos de um e dois pelos, e os pinguins magalhânicos adotaram-na como refúgio de reprodução, acasalando, parindo, alimentando suas crias, e transformando Valdés na "península sempre grávida". 

O ponto de concentração dos elefantes marinhos é a praia alcantilada de Caleta Valdés Sur. Antes das alterações climáticas em curso, manadas de elefantes marinhos dirigiam-se para Valdés em outubro, agora já se pode vê-los em setembro, ou até mesmo em agosto. 

Seu comportamento no mar é freqüentemente monitorado por uma fundação argentina conveniada com a ONU. Exímios nadadores e mergulhadores (submergem até 800 m de profundidade e têm fôlego para 40 minutos), os elefantes marinhos de Valdés constituem a única colônia da espécie no mundo, cuja população está aumentando. Sua perda de peso chamou a atenção da fundação, e constatou-se que nadam e mergulham muito mais tempo na caça às lulas, depredadas por armadas de barcos de pesca piratas em águas continentais argentinas.

Em companhia de meu filho Jan, com quatro anos de idade, visitei a península pela primeira vez em outubro de 1996, em missão de pré-produção de um filme documentário para a TV Suíça. Seu tema era a observação científica do comportamento destes textuais paquidermes, que além dos leões marinhos constituem um dos pratos prediletos das baleais Orca. 

Espetáculo raro, porque de duração alucinantemente rápida, e já transformado em atração turística de forte apelo voyeurista, pode-se testemunhar aqui o ataque das Orcas aos filhotes dos elefantes. Mas comparado à matança, a pauladas, de 250 mil a 300 mil lobos marinhos pelos caçadores ingleses na Terra do Fogo, entre 1910 e 1960, o ataque de uma Orca pode ser definido como exemplo cruelmente ecológico de desenvolvimento auto-sustentado das espécies. 

Em Puerto Pirámide, na entrada da península, floresce um segmento turístico comercial para a observação de baleias. Vendida ao visitante como "turismo ecológico", a observação ou "avistagem" ameaça reverter-se no seu oposto anti-ecológico, por constituir-se em assédio estressante para os animais.


Biombos na praia


A chegada a Puerto Madryn (45 mil habitantes) mexe com os emoções. 

A tintura aveludada do seu mar azul e dos alcantilados de pátina beje-amarelada não têm registro em nossa memória espectral, e nos deixa psicologicamente desarmados; experiência que se repetirá no contato com os grandes lagos da Cordilheira dos Andes. 

Madryn foi onde começou a colonização galesa, em 1865, graças à qual a Argentina ganhou territórios na Cordilheira dos Andes, até então virtualmente dominada pelo Chile; mais exatamente por um punhado de fazendeiros chilenos.

Localizada no Golfo Novo, ao sul da Península Valdés, a pequenina cidade costeira é formada por enseadas com formosas praias de areia negra (mas águas de temperaturas polares!), e tem excelente estrutura hoteleira. Uma curiosidade que incita às gargalhadas, mas capaz de rapidamente adaptar brasileiros aos costumes nativos, são os biombos armados na praia pelos veranistas argentinos, para proteger-se do vento, que sopra sem parar, levando de roldão guarda-sóis, cadeiras de praia, chapéus e o próprio veranista... 

Em 1997, a secretária de turismo de Madryn comprara uma briga feia com o governo federal, ao denunciar publicamente o polêmico plano do presidente contraventor, Carlos Menem, de instalar um depósito internacional de lixo nuclear, fortemente radiativo, em Gastre, no interior da província. Celebrizado por suas “relações carnais” com os EUA, Menem pretendia granjear a simpatia do primeiro mundo, ao receber dele, o que suas populações rejeitavam. Mas a população da Patagônia solenemente repeliu o lixo dos outros, e resistiu com sucesso contra o conluio.

A despedida de Madryn, de sua gente, seu mar e suas cores, é um aperto no coração, que na Patagônia não tem tempo de preparar-se para emoções em cascata. 

A próxima chamar-se-á Gaiman, distante 110 km de Madryn. Por indicação dos índios Tehuelches, o lugar (4.000 habitantes) foi fundado em 1865 pelos primeiros colonos galeses no vale do Rio Chubut, por constituir-se no único manancial de água; recurso hoje cada vez mais escasso na região. 

Relaxar no final de uma tarde, acompanhado do chá galês, guarnecido de uma infinidade de pães e tortas caseiros, como a mundialmente famosa e imperdível Torta Galesa, numa casa de chá como "Plads & Coeds", é combustível apropriado para uma emocionante viagem à ré no tempo, e comprometer o tempo e a continuidade da própria viagem, rumo ao sul; principalmente se a dona da casa, como dueña Marta, for descendente das linhagens fundadoras dos Lewis, Edwards ou Jones.


Os galeses de Friedrich Engels



Algum mestre taoista disse certa vez, que o sentido de qualquer viagem é o próprio caminho, e na expectativa da experiência romântica, frequentemente nesta trilha o caminhante se depara com uma matéria-prima da História: a tragédia. 

É o caso de Gaiman e das outras colônias galesas na Patagônia. Coube a Guillermo Saccomano lembrar-se de um clássico da Economia Política, que no séc. XIX descrevia o trabalho semi-escravo na minas inglesas de carvão, ferro, chumbo e estanho, que consumiram as vidas de milhares de homens, mulheres e crianças. 

Aos sete anos de idade, os meninos já penetravam nos túneis, e entre os trinta e cinco e quarenta, suas vidas desvaneciam. Morriam de doenças respiratórias, atrofias musculares, e acidentes. O horário excedia as doze horas por turno, nas profundezas de uma passagem estreita e úmida, transportando nas costas os metais extraídos das galerias. Quando os garotos chegavam em casa, anota o célebre cronista, se atiravam no chão de pedra, junto à chaminé, e desfaleciam em sono profundo. Não tinham forças nem para levar a comida à boca. Seus pais banhavam-nos enquanto dormiam, e dormindo arrastavam-nos para a cama. Febris, esgotados, quando tinham o domingo de folga, permaneciam deitados. Eram poucos os que freqüentavam igrejas e escolas. As meninas sofriam dupla opressão, enquanto trabalhadoras e porque eram mulheres, escorraçadas do trabalho depois de darem à luz a uma criança...

O cronista chamava-se Friedrich Engels – amigo, mentor e co-autor de Karl Marx -, e sua crônica é a tristemente famosa pesquisa intitulada "A situação da classe operária na Inglaterra", publicada em 1845 - narrativa tão fria quanto arrepiante, cujos protagonistas eram estes galeses. “É demasiado tarde para uma solução pacífica”, diagnosticava Engels. Contudo, ao invés da rebelião violenta, os galeses deram as costas à exploração brutal, à perseguição religiosa e à mutilação cultural, como a proibição de sua língua, o Gaélico celta, dos mais antigos do mundo. Optando pelo exílio, aportaram na costa da Patagônia em 1865, em busca da terra prometida.

Paradigma de amizade entre colonos europeus e índios americanos


Mal se instalavam na Patagônia, e testemunharam, pasmos, a perseguição dos nativos pelo exército argentino. 

E aqui talvez ocorra a única experiência de convívio pacífico e até mesmo afetivo, entre brancos e índios, em toda a América; crônica na qual índios salvaram a vida de galeses e, inversamente, galeses protegeram os índios das matanças. 

Acima: Exército do Gal. Julio Roca na Patagônia, 1865
Inferior: Cacique Casimiro e chefes Tehuelches em Buenos Aires, 1865.

Emociona-se dueña Marta, contagiando seus ouvintes, quando pesca no pó do deserto de Chubut  o espectro de Sayhueque, elégico chefe Tehuelche, que costumava levar seus antepassados galeses para a caça ao guanaco e ao ñandú, ensinando-lhes a técnica milenar da boladera

Enquanto fala, o vento assovia em bemol, parecendo recompor a trilha da Campaña del Desierto - eufemismo do holocausto indígena, de 1879, comandado pelo General Julio Roca. 

Explica o Guia Turístico YPF (a ex- Petrobrás argentina): "Dá-se este nome à ofensiva militar... que rompeu o nervo da sociedade indígena, pampeana-patagônica, e o correlacionado desfecho violento de um ciclo histórico...". 

Leio num jornal argentino, que a população de Bariloche exigia a derrubada do monumento de Roca, cujo bronze está definitivamente maculado por grafites acusatórios e indeléveis: "Roca, el carrasco de la Patagonia!".

O próprio Tschiffely admite que se sentira envergonhado de ser europeu, ao referir-se às façanhas truculentas de seus anfitriões, originários das ilhas britânicas, no sul da Patagônia. 

De Chubut à Terra do Fogo, a maioria das fazendas patagônias foi amealhada por uma “troca” perversa: “uma légua de terras por cada orelha de índio!" (Gen. Roca). Nem tão nobres farmers ingleses e irlandeses trucidaram índios, amarrando-os sobre blocos de gelo, flutuando nos rios da cordilheira, praticando tiro ao alvo em suas cabeças. Outros, mais sutis, convidavam os nativos ingênuos para um churrasco de ovelha; regado à estricnina. A nação Tehuelche foi extinta, obliterada da paisagem: os homens sobreviventes, integrados ao exército branco, as mulheres tornadas domésticas semi-escravas, e os filhos, separados dos pais.



Poema industrial

De volta à RN3, o segmento Trelew - Comodoro Rivadavia exige cuidado especial com o nível de combustível, pois só existem postos de gasolina a cada 150km. 

Com sorte, cruza-se com algum carro ou caminhão a cada meia hora. Punta Tombo, a maior reserva natural de pingüins do Hemisfério Sul, encontra-se no final da estrada de rípio que conduz à costa, e pode ser imperceptível. Quem a perdeu, deverá intercalar uma pausa no posto de gasolina de Camarones, e seu bar, atendido por alguns descendentes de índios Mapuche, que batizei de "Patagonia Café" - desértico, sujo, esculhambado, mas comoventemente acolhedor como o "Bagdad Café", no filme de Percy Adlon.

Estranhas aves mecânicas - bombas extratoras de petróleo, chamadas de "cegonhas" - sinalizam ao viajante sua aproximação de Comodoro Rivadavia (150 mil habitantes.). 

Em 1997, aqui o litro de gasolina custava apenas ¼ do preço de Buenos Aires, e a medida fora adotada há muitos anos pelo governo argentino para estimular o aumento demográfico da Patagônia. Projetado contra o sol poente, o sobe-e-desce e o grasnar metálico das "cegonhas" silhuetadas, compõem um fascinante poema industrial sobre o deserto amarelo e a seiva negra que corre em suas veias.

Comodoro Rivadavia é a grande encruzilhada do viandante motorizado, e a última oportunidade de tomar uma decisão sábia. Para quem tem pressa, seguir os 700 km pela RN3 até Rio Gallegos, e de lá até a Ilha da Terra do Fogo (mais 900 km), pode significar a perda de vários dias preciosos de viagem, através de uma paisagem monótona, com estrada perigosamente retilínea. As opções são tomar a RP 148, asfaltada, que cruza Chubut em direção a Esquel e Bariloche, nos Andes, ou seguir de carro pela RN3 até Rio Gallegos, e de lá - nova encruzilhada - aprumar na direção sul, para a Terra do Fogo; ou, finalmente, no sentido sudoeste, para o Lago Argentino e o Glaciar Perito Moreno.

Decidimos tomar o avião para Rio Gallegos, e de lá seguimos de ônibus para El Calafate, às margens do deslumbrante Lago Argentino, onde fizemos nossa primeira aproximação com a Cordilheira dos Andes. 


Com seus 3 mil residentes fixos, El Calafate é o portal de acesso ao Parque Nacional dos Glaciares, cujas 47 geleiras se entrelaçam com florestas selvagens, lagos, montanhas e rios caudalosos. Sua principal atração turística é a Geleira Perito Moreno, localizada a aproximadamente 80 km do centro da cidade. Diversas empresas de El Calafate transportam turistas até o parque, mas perde-se muito tempo a bordo dos ônibus, ganhando-se agilidade ao alugar um carro, uma motocicleta ou até mesmo um cavalo. 

O encontro com a geleira Perito Moreno, desparramando-se dos picos andinos sobre o Lago Argentino, proporciona sensações próximas da vivência mística. 

Aqui se aprende que em épocas remotas os lagos gigantescos foram geleiras que retrocederam sob o impacto de antigas alterações climáticas. As geleiras atuais são, portanto, modestos cartões de visita do Período Quaternário. Espetáculo ímpar: a cada 48 ou 72 horas, a comporta de gelo do Perito Moreno estacionada no meio do lago, rompe-se sob a pressão exercida pela água na parede principal, de 60 m de altura e 4,5 km de largura, e desaba... 

Agora as geleiras andinas retrocedem sob os impactos do efeito-estufa; desta vez de origem indiscutivelmente antropogênica.

Creio falar também em nome de Liége: uma das experiências mais memoráveis dessa viagem foi nossa caminhada sobre a areia negra das margens do Lago Argentino; distantes dos ruidosos treckings e outros anglicismos da moda. 


Cercado por aves raras e oníricas - cauquenes, patos selvagens, cisnes do pescoço negro e flamingos - tem-se aqui um dos encontros mais desafiadores com as intempéries patagônicas. As rajadas de vento que sopram dos Andes, aqui chegam a atingir mais de 100 km horários e a produzir dor de ouvidos; de frio, em pleno verão. Mas a recompensa não tardará, pois Júlio Gutierrez, do "Rick's Café", em El Calafate - que guardava um cartaz original de Casablanca , e que adorava posar para uma foto com seu chapéu à la Humphrey Bogart - prontamente servirá um submarino ou um vinho de boa cepa, acompanhado de jamón crudo.