14 fevereiro 2013

Frederico Füllgraf - "Esqueceram" de Dona Aracy, a salvadora de judeus

Aracy e João Guimarães Rosa, Hamburgo, 1939


Carta Aberta ao Paraná
– Via Coluna Aroldo Murá

O que segue, é uma triste evocação do que o poeta e dramaturgo alemão, de origem dinamarquesa, Friedrich Hebbel, dizia da insuficência e parvidade humanas: "Toda... mediocridade na poesia acarreta hipocrisia no caráter e na vida."

A rigor, a descrição do episódio caía como luva sobre a cerimônia de distinções a personalidades do Paraná com a medalha da Araucária, ocorrida em dezembro passado, que acompanhei em sua coluna, mas daqui, da orla do Pacífico. Decidi, então, esperar a poeira baixar e, principalmente, não afugentar os good spirits, pois era dia de festa e você, um dos galardoados. Nesse meio tempo, renasceu o Senhor, nos quatro cantos do planeta acabam de esbaldar-se em bacanais dionisíacos e, fiel aos dislikes da Quaresma, já estando prestes a crucificá-Lo de novo, mando-lhe minha estocada no imperdoável.

Faltou uma figura humana insubstituível naquele pódio de bravos paranaenses, Aroldo, que, como você, foram vestidos pelo governador de turno, com a Comenda da Araucária. Faltou Aracy Moebius Tess de Carvalho, “ Ara”, a esposa do mestre Guimarães Rosa, que lhe teria arrancado lágrimas de ternura. Mas não poderia ter faltado sob qualquer pretexto, por isso, há exatos dois (!) anos, sugeri ao governo do Paraná, que não perdesse tempo em trazê-la a Curitiba e homenageá-la como a rara e emblemática Heroína, mundo afora conhecida como o “Anjo de Hamburgo”. Contudo, Curitiba traz nas entranhas a maldição, não dos anjos caídos, que são estóicos, mas dos santos pequenos da mediaria, sempre de costas para os Tempos e a História, deformação congênita que seus administradores tentam encobrir com ícones ladinos de capital de muitas mentiras; “primeiro-mundistas”, “europeias”, “ecológicas”, o escambau.

Como você sabe, em 2010 a editora Record me encomendara o romance “O Caminho de Tula”, narrativa sobre o pano de fundo histórico do nazismo, que se desloca entre a Alemanha, a União Soviética e o Brasil, e temperada pelo olhar de um jovem que após a morte de seu pai, descobre sua verdadeira trajetória, com o acesso aos autos de um processo de “des-nazificação”, de 1948. O livro, embora em nada datado, exigiu-me pesquisa que editor nenhum vai me pagar, e umas das tramas paralelas brinca com a estória de um personagem algo mítico, que segundo o próprio Guimarães Rosa, realizou a “mãe de todas as traduções”, para o Alemão, do clássico “Grandes Sertões. Veredas”: Curt Meyer-Clason.

Conheci-o em 1975, eu, estudante de Cinema em Berlim, “visitando” a “Revolução dos Cravos”, ele, então diretor do Instituto Goethe, em Lisboa. Em 1976, a Rádio SFB, de Berlim, enviou-me novamente a Lisboa, desta vez para gravar um programa sobre o papel dos escritores durante a derrubada do fascismo. O programa foi ao ar com o título “Motim no Café Lusitânia”, pontilhado de longas entrevistas com três Josés, todos já saudosos: o imperdível José Cardoso Pires (“O Defilm”), o titânico poeta José Gomes Ferreira, e José Saramago, ainda algo desconhecido, a quem entrevistei em sua própria casa. Os contatos e a articulação, todos, me foram auspiciados por Meyer-Clason, que, como tradutor genial de “Cem anos de solidão”, de García Márquez, estava traduzindo para o Alemão e divulgando Europa afora  a poderosa plêiade de escritores portugueses censurados pela ditadura fascista – com esses repentes de solidariedade aos “comunistas”, estaria Mayer-Clason exorcizando seus próprios fantasmas?

Mas o que essas tramas paralelas da ficção têm a ver com a figura de Aracy, como filha de pai brasileiro e mãe alemã, nascida em 1908, em Rio Negro? Ocorre que a História real acabou unindo indissoluvelmente os caminhos de Aracy e de Meyer-Clason: ela, fugindo ao preconceito da mal vista “mulher separada”, abandonando o Brasil em 1935, com destino a Hamburgo, e, em sentido inverso, Meyer-Clason, deixando o norte da Alemanha no final da década de 1930, para fixar-se no Brasil como corretor de commodities brasileiros e argentinos, que exportava para a Alemanha. Até que, no início da Segunda Guerra, a polícia política de Getúlio Vargas flagrou Meyer-Clason em atividade ilícita: ele se desempenhava como agente da espionagem alemã! Atividade nunca provada em seus detalhes, mas que lhe custou cinco anos em um campo de concentração na Ilha Grande, Rio de Janeiro, onde outro intelectual alemão – homossexual e esquerdista, a policia de Filinto Müller não fazia distinção entre seguidores e opositores do nazismo, prendia todos! – o despertou para a Literatura. Em “Äquator”(Debaixo do Equador, 1986), M.Clason narra sua metamorfose, de corretor de cereais para amante da Literatura, e de suposto agente nazista, para apaixonado pelo Brasil; não guardara rancores. Em 1995, publica “Die große Insel“ [A Ilha Grande], como indifarçadas memórias do cárcere, elégico título do romance de Graciliano Ramos, outro “hóspede” da grande ilha, libertado em 1937.

E Aracy, o que fazia? Morando com uma tia alemã, conseguira emprego como secretária biligue no Consulado Geral do Brasil em Hamburgo. A famigerada “Noite dos Cristais” desencadeara o progrom anti-semita dos sicários de Hitler, e a despolitizada, mas nada boba, Aracy, não teve dúvidas: começou a ajudar os judeus que batiam à porta do consulado, em busca de um visto para o Brasil. Sua “ajuda” tinha um pequeno problema: o cônsul brasileiro era simpatizante dos nazistas e o Itamaraty seguia à risca a Circular Secreta 1.127, que proibia a concessão de vistos a "semitas" . A Aracy ocorreu um ardil: recebia os judeus na ausência do cônsul e contrabandeava os formulários dos vistos para a pilha da papelada a assinar pelo cônsul, sempre faltando poucos minutos para encerramento do expediente; pelo qual o cônsul já ansiava, desatento. À atividade subversiva veio somar-se o novo cônsul adjunto que chegara a Hamburgo em 1938, logo se apaixonara pela bela secretária com sotaque de “lêite quênte”, e abandonara sua esposa, deixada no Brasil: João Guimarães Rosa. Como a maioria de seus colegas do Itamaraty, escritor nas horas vagas.

Juntos, Aracy e o Rosa acabaram salvando a vida de dezenas (há quem estime, centenas) de judeus alemães, que então emigraram ao Brasil. Única mulher a ter seu nome escrito, em 1982, no Jardim dos Justos entre as Nações, no Museu do Holocausto (Yad Vashem), em Israel, alguém já disse que a historiografia brasileira não contempla esta mulher, conhecida pela comunidade judaica por “Anjo de Hamburgo”, lembrada oportuna, mas tardiamente, pela Presidente Dilma Rousseff em evento ocorrido no final de 2012.

Dona Aracy é uma personagem comovente da História, mas também da Literatura por excelência, pois encarna exemplarmente a tríade espiritual da heroína de mil faces: destemor, aventura e romance. Heroína que não perdera o hábito, depois de retornar ao Brasil e perder o Rosa: vivendo no apartamento do casal no Rio, em 1968, teve a pachorra de nele esconder o compositor Geraldo Vandré, perseguido pela ditadura por causa de “Caminhando (Pra não dizer que não falei de flores)”. Aracy era mesmo uma doida, na melhor acepção do termo: no mesmo prédio moravam vários oficiais do exército, mas enquanto a repressão, desorientada, caçava Vandré nas ruas, este compunha, incólume, no sofá de Aracy. Foi o Dr. Eduardo Tess Filho, seu neto, que levou Vandré para São Paulo numa Kombi. E de lá para o exílio.

Minha advertência ao governo Beto Richa, como você e seus leitores podem inferir, foi feita mediante Ofício de 8 de fevereiro de 2011, entregue ao então Secretário da Cultura, Paulino Viapiana (vide anexo), através da Diretora Geral da SEC, Valéria Marques Teixeira, que então me explicou, que a SEC com muita honra acolhia e intermediaria, mas que o Palácio Iguaçu era o destinarário formal da sugestão.

Escrevíamos o início de fevereiro. Em São Paulo, Dona Aracy beirava os 103 anos, em Munique, Meyer-Clason, nascido em 1910, os 101 anos de idade.

Avisei ao Dr. Eduardo Tess Filho, neto de Dona Aracy, minha sugestão e o deixei de sobreaviso para a resposta do governo Richa. Passaram-se semanas, quando recebi um telefonema de uma funcionária subalterna da SEC, sugerindo que a Federação Israelita do Paraná “encabeçasse” o evento e avisando que me chamariam da federação. Reagi estupefato: obviamente, como representação da etnia mais vilipendiada em todo o séc. XX, a federação deveria participar do evento, sentada em cadeira de honra. Vaticinei: por que será que os judeus do Paraná tinham esquecido Dona Aracy. Me perguntei: será que um cidadão independente tem que pedir “autorização” para entidade judaica, para homenagear um amigo dos judeus? Por que essa competição imbecil por um assunto da máxima seriedade? Questionamentos, todos, que, ainda por cima, poderiam detonar sobre minha cabeça - na qual perdura a memória de uma avó judia! - a tão desgastada e ridícula borduna do “anti-semitismo”, para quem ousa criticar Israel ou as associaçõs judaicas, mundo afora.

Trocado em miúdos: a federação jamais ligou, a SEC se esquivou, a Prefeitura de Rio Negro pediu “um tempo” (um tempo?)... – enfim, o Paraná “esqueceu” da grande mulher, a provinciana de Rio Negro, que tecera fios da Humanidade, pela primeira vez, unindo pelo cordão umbelical, o Paraná ao ventre da História Universal. Mas para isso oferecendo sua própria cabeça a prêmio.

Dona Aracy morreu no mês seguinte, março de 2011, como amigo até o último suspiro do Rosa, Meyer-Clason passou em janeiro de 2012.

Indigna-me essa mediocridade de governo e instituições do Paraná.
Indigna-me a preguiça e a indiferença do servidor público.
Indigna-me terem “esquecido” de Aracy.
Indigna-me o pouco caso, a obstrução, a agressão à memória coletiva.
Por isso, um filme, tão logo seja possível.

Fotos: ilustração