09 outubro 2010

Sabine Lange - O molho de chaves (excertos) 2a. parte: A virada



Trad. F.Füllgraf

Então chegou a época em que deveria acontecer a Wende; a virada.
O dia esperado, em que aquela grade seria alçada e no qual as leoas poderiam finalmente se juntar. O dia em que fosse servido o bolo, o grande bolo, pelo qual a fome já tinha deixado para trás a própria fome, desde tempos imemoriais desembocando num grande vale branco, feito de neve. Aquela pista, muito comprida, que todos pretendiam percorrer, mas que alguém, tantos anos atrás, havia dobrado, inflectido para baixo, feita calha de chuva, de repente aquela baliza foi levantada – vejam!
                                      
Eram os dias em que as eclusas deveriam ser abertas, para que se esparramassem as águas represadas e provocassem algum acontecimento. De preferência, tudo. Até mesmo os diminutos regatos, que costumavam correr e desaparecer sob as pequenas pedras seriam chupadas de volta. O que era isso?

Finalmente estreara um grande filme; um filme abrangente, total. Um filme projetado sobre as águas. E ele deixa afundar os barcos, para que as pessoas também pudessem vê-lo com a perspectiva invertida, de baixo para cima. Da direita para a esquerda. 

A notícia da virada chegava de todos os quadrantes, e eu estava sentada no meio de tudo isso. No olho do furacão. Eu assistia TV e intuí um acontecimento insuperável. Intui que agora meus olhos transbordariam. E mais do que isso. Não conseguia acreditar. O que eu via, crescia feito inchaço de uma bolha de ferida prestes a estourar. Para qual lado você quer saltar.

Mas que gentileza - os dentes já tinham apodrecido e caído das gengivas e, finalmente, alguém se lembrava de trazer a bandeja com as castanhas!...
Agora eu sabia que alguma coisa estava para acontecer, que eu jamais esquecerei em minha vida. Espere - um comunicado! Para todos, por favor! Damas e cavalheiros, ninguém pediu que morressem! Que se torturassem à toa! Tudo tinha sido PREMEDITADO. Tivessem exercitado a paciência... Porque ainda vão precisar de tudo. Juventude, beleza, e sua saúde. Calma, porque agora chegou a hora.

Aquilo era um negócio de bom tamanho para uma leitura ao vivo, de tão inacreditável. Mirei para a TV como John sempre olhava. Com aquela mirada de Gäntschow. Como se visse alguma coisa que me chamasse atenção. John, chamei-o, venha aqui um pouquinho. E John veio da cozinha, calçando pantufas. Ele trazia enrolada uma fatia de Presskopf.4 Quéquihá? – ele grunhiu.

Ele também está recebendo bilhetes, exclamei. Veja - bilhetes, ele também! Tirou do bolso da calça! E esbugalhei os olhos. E fiquei escutando. E não conseguia acreditar.

Então berrei. Aproximei-me do televisor, me abaixei e imprequei contra a imagem na tela. Leia direito, seu babaca! Por acaso não sabe ler? Ali não está escrito, ´a partir de hoje, todo mundo pode atravessar a fronteira´, nem a partir de mais tarde, mas a partir de agora, já... – mas será possível!
Ali está escrito o seguinte: Na madrugada que passou não toquei punheta.
E também está escrito: Seres humanos não valem nada. É o que está escrito.

Deitei-me nos braços de John e chorei. E disse, John, agora podemos ir até nossa avó. John apanhou a garrafa de Gamza – ei, que vinho porreta é esse que vocês têm aí, e, a propósito, eu acho vocês umas pessoas bacanas. Todos vocês. E John derramou a metade do vinho que restava na garrafa sobre o televisor.

Eram as 18:53 do dia 9 de novembro de 1989, e mal tínhamos começado a jantar. Uma semana depois atravessei o muro, no Checkpoint Charlie. 5 Fazia um dia de frio úmido e eu sentia arrepios nas pernas. Eu vinha acompanhada de um amigo, e achei que as casas tinham aspecto imundo, de tão pichadas. Fiquei desapontada, com enorme estranhamento. Tínhamos sido convidados para o café da manhã na casa de amigos, em Kreuzberg 6; amigos que há muitos anos tinham escapado ao Ocidente. Quando me despedi, furtivamente apanhei uma banana do prato, e quando os amigos já tinham alcançado a porta, apanhei mais uma. Motivo pelo qual durante todo o caminho da volta me torturou a consciência pesada.

Minha primeira viagem me levou à Suécia. Eu desejava tanto subir a uma balsa branca, dessas que eu tinha visto, olhando desde Arkona! E que se podia ver também desde Königsstuhl, em Sassnitz.  Quando me encontrei no convés do ferry, achei estar vendo Arkona, e também Königsstuhl, em Sassnitz..

Minha segunda viagem foi para Edinburgh, onde fui visitar uma amiga que eu conhecia do Acervo, uma professora universitária, que eu admiro muito. Foi uma viagem maravilhosa, e nos perdemos em conversas gostosas. Achei Edinburgh uma cidade encantadora e os Highlands me impressionaram para tirar o fôlego.
Quando retornei, meu periquito australiano estava morrendo. Eu o entregara à guarda de amigos. Eles eram músicos. Quando cheguei para apanhar minha ave, eles estavam ensaiando.

Tocavam um ritmo afogueado, do gênero Klezmer 7. Durante o ensaio tinham colocado um pano em cima da gaiola. Quando levantei o pano, o periquito estrebuchava, esticado na areia do fundo da gaiola. Tinham matado o periquito de tanta música! Olhei para a ave e pensei: se eu pudesse sentir o que ela está sentindo! Depois cavei uma pequena cova em frente da casa, debaixo de uma roseira. Levei dias sem conseguir me consolar. Eu não sabia o quanto estivera ligada àquele pássaro.

Até hoje consigo sentir o peso da leve vibração em meu dedo indicador quando ele vinha voando e pousava em minha mão. Mas do que é que eu estou falando! Talvez eu quisesse dizer que aos poucos minhas viagens foram resvalando para o esquecimento, mas que o pequeno pássaro continua a voar; ele sempre volta a levantar vôo em meus pensamentos.

Nunca mais voltei a pôr os pés na igreja. O pastor fora transferido de paróquia. Por causa da bebedeira. Por causa de bebedeira? Eu sempre tive saudades das sonoridades do órgão. Toccatas e Fugas. Na verdade ao órgão nunca consegui tocar a contento aquelas músicas, mas executei-as sempre de forma rasante e com paixão. Um leigo em música jamais teria notado qualquer deslize. Eu chegava a preencher a igreja toda com o som das minhas execuções. Eram belos aqueles momentos em que eu tocava e vibrava, misturada aos sons. Jamais esquecerei o reverendo que me entregou a chave da igreja e me ajudou a alojar um usuário do Acervo Fallada, que viera do Ocidente, mas sem credenciamento algum.

Só agora fiquei sabendo que o cômodo, que já servira como sala de aulas de catecismo, tinha sido uma lavanderia, antigamente. Na verdade era uma genuína propriedade rural que, mais de cem anos atrás, a Igreja tinha comprado para instalar a sede de sua paróquia. Disseram-me ainda que a lavanderia da fazenda, que era a maior das salas, era geminada com a cocheira dos cavalos.

Mas agora me lembro de uma terceira viagem que fiz. Fui à Suíça. Passei por cidades como Küsnacht, atravessei Chur. Eu queria visitar a mãe de John. Ela morava numa mansão às margens do Lago Lugano. Todos os seus aposentos estavam repletos de peças de arte. As salas tinham aspecto amortecido, com tapeçaria alta, móveis em estilos barroco e Jugendstil. Mas não tenho certeza disso. Ela possuía um piano de cauda, o que imediatamente me ligou a ela. Ela era bonita, elegante e jovial. E era loquaz; loquaz de um modo quase maternal. Mas não consegui gostar dela – por que é que ela o deixara andar por aí daquele jeito, com aquela calça surrada e as sandálias mais do que gastas? Por que não lhe deu o que ele precisava, quando viajava para uma cidade desconhecida. E para país estrangeiro.


* Sabine Lange – poeta e escritora da ex-RDA, que de meados dos anos 1980 até o final dos anos 1990, dirigiu o Acervo Fallada, do escritor Hans Fallada, morto em 1947, autor, entre outros, do romance “Jeder stirbt für sich allein”, a ser lançado no Brasil em janeiro de 2011, sob o título “Sós, em Berlim”, pela Editora Record. A primeira edição completa da novela “Schlüsselbund” (O molho de chaves) foi publicada na Suécia pela Ed. Rugerup.

Notas

1 – Polícia de Segurança de Estado (MfS - Ministerium für Staatssicherheit), mais conhecida pela abreviatura StaSi, a polícia política da ex-RDA. Como lembrarão muitos cinéfilos que viram o filme “Das Leben der Anderen” (A vida dos outros, Oscar de melhor filme estrangeiro em 2007), em seus 40 anos de existência, com seus 200 mil agentes e uma rede de mais de 150 mil informantes “voluntários” (alcaguetes, dedos-duros), para uma população que não passava de 18 milhões (um agente para cada 60 habitantes), esta polícia, espécie de Gestapo do Socialismo Real, bisbilhotou, achacou, desestabilizou e arruinou a vida de dezenas de milhares, e matando algumas dezenas de cidadãos na ex-RDA.

2 – Kätelkuhl – cava gigantesca com conjunto de lagos, na região de Feldberg, Estado de Mecklenburg, Alemanha.

3 - Gäntschow – alusão ao personagem Johannes Gäntschow, protagonista do romance “Wir hatten mal ein Kind” (Uma vez tivemos um filho), de Hans Fallada.

4-  Presskopf – prato típico na ex-RDA, espécie de “cabeça de porco no mocotó”, na verdade tipo de lingüiça barata.

5-  Checkpoint Charlie – antigo posto de controle norte-americano, usado como passagem pelo Muro de Berlim, desativado, mas tornado atrativo turístico após a queda do muro.

5 – Kreuzberg – antigo bairro de classe média e de operários (nos pátios dos fundos), na Berlim entre-guerras, que após a divisão da cidade, em 1961, permaneceu no setor ocidental, cujas ruas mais importantes foram então todas cortadas pela construção do muro. Na década de 1960, com seus prédios e casarões malcuidados e semi-arruinados, Kreuzberg era um bairro com imóveis baratos para compra e aluguel, atraindo grande número de trabalhadores turcos, com suas famílias, além de estudantes e intelectuais, cujos bares, restaurantes e comércio ao ar livre lhe emprestaram um toque de “Quartier Latin da Prússia”. Após a queda do muro, Kreuzberg retornou ao antigo centro geográfico da capital, tornando-se território de especulação imobiliária voraz, e atraindo ao cenário novos moradores, yuppies endinheirados, mas também gente como o cineasta Wim Wenders e sua produtora, Road Movies.

7-  Klezmer – tradicional gênero musical iídiche.