03 maio 2010

Frederico Füllgraf - Por uma vaca e um celular

(Miles yrus, Naked)

Conto


Uma denúncia anônima chegou ao Conselho Tutelar. A Vara de Infância e da Juventude é acionada. Até a conclusão das investigações, a guarda da menina é passada à avó materna e uma irmã mais velha; casada. Por determinação da juíza, a menor é submetida a exames psicológicos. O delegado que investiga o caso dispara o texto da lei: é delito “prometer ou efetivar a entrega de filho ou pupilo a terceiro, mediante paga ou recompensa”.


     A menina está muito perturbada, chora com medo da prisão do pai. E do “protetor“ também. Parece não entender o que fez de errado. Parece. Terá sido "o efeito Anita“ ? Em sua memória confundida, re-pesca as imagens da novela das oito, que assistia com o “tio”: a lolita Mel Lisboa refestelando-se na cama com o quarentão paternal, o seio direito desnudo, as coxas mal escondendo seu delta de Vênus em broto.


     A negociação entre os dois homens teria ocorrido há meio ano, mas os vizinhos, o pai-arrendatário e o fazendeiro-“protetor”, negam as acusações. Admitem, contudo, certa “querença” entre a menina e o último. Malicioso, o policial constata que o vizinho e a menina viviam juntos, mas não tem certeza se ocorreu ou não a venda - Venda?


     A televisão ligada na sala, marido e mulher acusam-se mutuamente na cozinha. Essa moda de criança usar saltinho e batom, foi tu que incentivou, mulher! A esposa se defende: às vezes eu acho que de tanta novela e propaganda de sem-vergonhice, as regra dela chegaram mais cedo...


     A psicóloga vara a noite em vigília, depois esparrama seus achados sobre a escrivaninha do promotor. Desembesta erudição: A Lolita de Vladimir Nabokov, a menina de 12 anos, e figura central do célebre romance de 1955, desfila uma sensualidade tão ambígua quanto o próprio corpo, que exibe os primeiros contornos de mulher. Essa ambigüidade atiça a caça romântica, assume as formas e o sabor de um fruto proibido...


     O promotor se ajeita na cadeira desconfortável, desdenha o significado metafórico do fruto: “toda proibição é ponto de partida para uma acusação!” A psicóloga não perde a elegância, abrindo o livro na página com os destaques de marca-texto fosforescente: “O amante sente-se atraído por uma combinação de sinais que incluem juventude, saúde perfeita, hormônios em plena atividade, seios, pêlos e curvas em floração. Além de exibir tais atributos, a lolita alimenta clássicas fantasias masculinas..”.


     O promotor volta a aboletar-se: virgindade violada, eis o argüitivo! Pitonisa incorporada, a psicóloga instiga: “Sem dúvida, que entre o amante e a ninfeta, tudo é fogo. Sensações à flor da pele superam cautelas. A paixão então se estabelece, nublando a capacidade de julgamento do homem, como previu o filósofo espanhol Ortega y Gasset...” - Filósofo safado, esse! - corta o promotor, acende um cigarro e deixa a sala.


     Treteiro, o fazendeiro tenta desconversar. Diz: o inferno era a menina! Ele não conseguia desgrudar os olhos dela, serpejando lascivamente seu corpinho de menina-mulher na varanda da meia-água. O rádio ligado na cozinha tocava uma daquelas guarânias erotizantes de uma dupla neo-caipira travestida de caubói americano - Quando ela passa ninguém fica parado Tem sabor de pecado os seus lábios de mel...


     Estava parado no pátio, protegido pela sombra da única aroeira remanescente e acompanhou o olhar dela, fingindo apreensão por algum detalhe amoitado no plano geral do campo da fazenda, Uma brisa preguiçosa acariciava a plantação de soja verde-chamejante, e os movimentos tansos dos poucos animais no pasto conferiam letargo ao início da tarde; languidez que o fez mergulhar na lembrança da primeira vez – o corpo dela montando suas pernas, o beijo na boca de lábios leitoados, lambiscando seus mamilos de ninfa pubescente, suas mãos redesenhando a calipígia precoce, a bunda bem-criada, roçando seu ventre...


     Ao som de Latino, os requebros da menina esboçaram um sorriso debochado no canto esquerdo da boca dele. Conhecia aquelas coreografias televisivas dos programas de estúdio dominicais, transmitidos por canais concorrentes, mas todos muito iguais. Todos os domingos, milhões de meninas, moças e mulheres acompanhavam pasmadas o bailareco das saltatrizes no titeriteio dos estúdios de TV, invejando-lhes a glória de um close da câmera, capaz de catapultá-las para a tão sonhada carreira, decantada pelas revistas nas bancas de jornal.


     Não ouviu os passos do homem que se aproximava por trás e assustou-se quando o compadre deu-lhe as palmadinhas costumeiras no ombro. O outro chasqueou um sorriso treteiro ao recolher seu olhar da área de onde a filha se esgueirava para a cozinha, e onde recebeu a ordem para preparar o chimarrão. Alapados à sombra da velha aroeira, os dois homens acepilharam causos dos últimos dias com prosa cúmplice, dividindo mates na ponta da bombilha. Foi quando o patrão cortou da orilha para o olho d´água, assuntando que entre ele e a menina tinha desabrochado uma benquerença.


     Abismado, o outro soltou a cuia e levantou-se feito bagual, com a mão direita apajeando o facão. Só voltou a acocorar-se quando o patrão acenou com um negócio, porque entre compadre não tem engabelação. Floreou as palavras, propondo-lhe uma justa compensação: ofereceu-lhe a vaca leiteira, o aparelho de som e o telefone celular. Em troca, ficaria com a proteção da menina.


     Amancebaram-se, então?! - rosna o delegado. No início do conúbio, diz o pai, ele teria resistido, pois a menina tinha apenas 12 anos, depois, contudo, ficara cediço, adomado pela situação...


     Não havendo flagrante, só resta ao delegado enquadrar o fazendeiro em crime de “estupro presumido”; qualificação de violência para casos de menores de catorze anos. A caminho de casa, estaciona o carro em frente à locadora de vídeo. Pede “Menina Bonita” e, de volta ao volante, enquanto desvia o tráfego, pergunta-se, intrigado, por que sente a incômoda atração pela estonteante Brooke Shields, no papel da prostituta infantil do filme, mal tinha ela treze aninhos.


Sue Lyon no papel de Dolores Haze, em "Lolita", de Stanley Kubrick (1962)