09 setembro 2010

Frederico Füllgraf - Lili Marleen, os 95 anos de um mito (parte 1/3)

 
Fotos: divulgação, Bundesarchiv, Wikipedia

 Acima - soldado alemão na 1a. Guerra Mundial; 
meio - Hans Leip e o quartel da famosa lanterna;
embaixo - Lale Andersen e Fitzroy Maclean (segundo da direita)

Frederico Füllgraf
₢ 2010
Texto protegido pelo

Creative Commons


No início da tarde de 12 abril de 1941, os tanques do Standartenführer (coronel), Fritz Klingenberg, vinte e nove anos de idade, comandante da 2ª. Divisão “Das Reich”, da SS, são embarcados em balsas infláveis, capturadas, e cruzam o Rio Danúbio, cujas pontes de acesso a Belgrado estavam todas dinamitadas. Sem enfrentar resistência, às 17h00 daquela tarde a SS toma a cidade e hasteia a suástica no prédio da legação alemã. Duas horas mais tarde, o prefeito de Belgrado faz a entrega oficial da capital iugoslava a Klingenberg.


Quando Klingenberg e seus blindados avançavam pelas ruas de Belgrado, a cidade já estava em ruínas. A explicação disso era a “Diretiva 25”, codinome para a invasão dos Balcãs. Enfurecido com a “falta de confiança” da Iugoslávia, que derrubara o Príncipe Regente, Paulo, com um golpe militar, substituindo-o pelo Rei Pedro II, que se negara a aderir ao Pacto Tripartite (Hungria, Bulgária e Romênia), às sete da manhã de 6 de abril de 1941, Hitler ordena a execução do Strafgericht, literalmente “tribunal de punição”.


Trezentos caças-bombardeiros Junkers Ju 87, os temíveis Stukas, assomam ao céu sobre Belgrado, precipitando-se sobre a cidade ao som de sirenes horripilantes, semeando o terror entre a população desesperada, antes ainda que a primeira bomba fizesse vítimas. Findo o ataque, pelo menos quatro mil pessoas jaziam mortas sob os escombros fumegantes.


Assim caia Belgrado, na versão oficial, esforçadamente empírica, do Centro de Publicações de História Militar do Exército dos EUA¹, e como todas de seu gênero, econômica em relatos testemunhais. Na verdade, eu “cheguei” à tomada de Belgrado por vias literalmente tortuosas, no encalço de uma tal brigada “SS Germania”, que naquele 12 de abril também estava embarcada nas balsas de Klingenberg.


No encalço da “SS Germania”


Força especial, recém-constituída em 1939, como brigada da Waffen SS, a trajetória da “SS Germania” começara com sua participação ativa na ocupação de Roterdã, Haia e Liége, depois Cambrai, Lille, Amiens, Calais e Dunquerque, durante a invasão da Holanda, Bélgica e França, primavera e verão de 1940. De lá, a brigada avançou para Lyon, Vichy e Olermot-Ferrand, durante a invasão da França não ocupada. Incorporado na tal “SS Germania”, estava um jovem Oberscharführer, aspirante a oficial, da SS: meu pai.


Preso em abril de 1945, pelo Exército Vermelho, é internado num campo de trabalhos forçados, 150 km a sudeste de Moscou, de onde consegue escapar na madrugada do réveillon de 1946, sob 30 graus negativos, empreendendo uma caminhada em ziguezague através das linhas soviéticas, de três mil quilômetros de volta à Alemanha, em ruínas. Entregando-se às tropas norte-americanas, durante alguns anos colabora com a inteligência militar dos EUA e, devidamente “desnazificado”, emigra para o Brasil no início da década de 1950.


Sua estória inspirou um romance, ainda “em obras”, contratado por uma editora do Rio de Janeiro, cuja narrativa expõe o fascínio exercido pelos uniformes negros da SS em milhares de jovens da República de Weimar, e que setenta anos depois me leva ao encontro dos últimos sobreviventes russos, ucranianos e iugoslavos da 2ª. Guerra Mundial, narrando as invasões nazistas do ponto de vista dos invadidos e das cidades que não existem mais – Belgrado, Charkov, e em parte Kiev – porque sobre suas ruínas foram erigidas urbes completamente diferentes.


Em março de 1941, conta meu pai ao juiz de um tribunal de desnazificação da cidade de Kassel, que o absolveu em abril de 1948, sua unidade fora enviada à Romênia, envolvendo-se em combates nos Cárpatos, onde então recebera ordens para deslocar-se a Sófia, na Bulgária, e de lá para Belgrado; palco da estória de uma canção, cuja centelha literalmente salta de uma trincheira para outra, de exércitos inimigos, durante anos impondo-se como insólito código radiofônico de cessar-fogo.


Os incêndios de Mussolini


Pano de fundo dessas invasões bárbaras é o expansionismo de Benito Mussolini, cujas tropas assaltam os ocupantes britânicos do Egito, em 13 de setembro de 1940, em cuja contra-ofensiva são feitos 25 mil prisioneiros italianos na Líbia. Não satisfeito, Mussolini lança- se em nova aventura estabanada, atacando a Grécia, em outubro de 1940, onde é nova e violentamente repelido.


Aflito, o líder fascista italiano pede ajuda militar em Berlim. Imerso nos preparativos de "sua guerra" muito pessoal, contra a União Soviética, depois de muito hesitar, Hitler sai em socorro da Itália. Em fevereiro de 1941, entra em cena o Afrika-Korps, sob o comando do Gen. Erwin Rommel, que desembarca admirado e invejosamente odiado, nas próprias e nas fileiras inimigas, como comandante da Gespenster-Division, a "Divisão-Fantasma", festejada durante a invasão da França pelo desempenho e os ataques-surpresa de seus blindados.


Mas ao seu nome também adere fama de “befehlsverweigerndes Arschloch” (um “cu insubordinado”), entre outros porque na França desdenhara instruções e se negara a dispensar maus-tratos a prisioneiros judeus. E mais uma vez Rommel desobedece às ordens de Berlim, impondo com todo o rigor o tratamento ético de prisioneiros na África, e ao invés de manter-se na defensiva, passando à ofensiva contra a fortaleza britânica em Tobruk.


Nove meses depois de seu desembarque, o Estado Maior britânico anda às voltas com dois problemas: o primeiro, é o frisson exercido sobre as tropas inglesas pela Raposa do deserto, o novo aliás de Erwin Rommel, decidindo por eliminá-lo. Em novembro de 1941, o Ten. Geoffrey Keyes, de vinte e quatro anos, é morto durante o atentado fracassado de um comando assassino, britânico, incumbido de matar Rommel, mas o Afrika-Korps não vacila e dá sepultamento com todas as honrarias ao inglês, cujo funeral é conduzido pelo capelão pessoal do “galante cavaleiro Rommel”.


Claude "Auk" Auchinlek, general britânico, adverte seus comandantes numa carta: "Existe eminente perigo de que nosso amigo Rommel se torne um mago (...) para nossas tropas, que só falam nele (...) Mas ainda que fosse super-homem, seria muito indesejável que nossos homens o dotassem de poderes sobrenaturais" – escreve Auchinlek, terminando sua carta com a observação (ou ato falho): "PS, I’m not jealous of Rommel" / não tenho ciúmes de Rommel" ²


Já o segundo problema dos britânicos é a transmissão diária, pelo rádio, de certa canção alemã, muito incentivada por Rommel. Cúmulo do vexame para alguns comandantes, é que sob intensa pressão dos recrutas sua recepção nos acampamentos do 8º. Exército é amplificada por alto-falantes; a rapaziada ouvindo-a, abobada... Bacorejam os oficiais de Sua Majestade, que a canção ameaça minar o moral dos praças. Mas não só deles.


21h57 – as armas silenciam!


Oficial do Special Air Service (SAS), unidade de elite para a execução de missões perigosas do 8º. Exército, Fitzroy Maclean, esgueira-se sorrateiro pelo terreno, rumo às instalações portuárias do Eixo, em Benghazi, onde deverá plantar explosivos, e semear a confusão nas fileiras inimigas.


Quando a noite cai sobre o deserto, a temperatura despenca num piscar de olhos, e os homens de Maclean buscam refúgio por trás de uns rochedos. Faz um frio dos diabos, e os tommies acendem uma pequena fogueira, comem bife enlatado e bebem chá e um gole de rum. Enquanto Maclean troca mensagens pelo rádio com seu comando, seus homens, exaustos, já estão estirados na areia, mas intrigados com a charada, se quem gira, são eles, ou o universo, sobre suas cabeças.


O terror dos soldados europeus não é o inimigo em armas, mas a ghibli, uma tempestade de areia que sopra do sul e que atinge 60 graus centígrados: "Quando não sopra alguma tempestade de areia (...) é o calor que nos penaliza. Em dias de combate, os enfrentamentos costumam arrefecer à hora do almoço. Nossos ´videntes´ [meteorologistas] já chegaram a medir 75 graus de temperatura (...) Aconteceu que peças de roupa, colocadas para secar sobre a blindagem de um tanque, ficaram carbonizadas. Mais tarde, vi (...) como soldados frigiam ovos sobre os ferros incandescentes de outro tanque (...) Só à noite, quando a tempestade adormece e as moscas se recolhem, a temperatura se torna suportável...“ ³, escreve com o coração apertado, Harald Kuhn, Comandante do 5º. Regimento de Blindados do Afrika-Korps, à luz de uma lamparina, num acampamento alemão, perto dali.


Atrás dos rochedos, o rádio de Maclean continua pipocando mensagens cifradas e, de repente, eis aquela canção, transmitida religiosamente às 21h57, pela Rádio Belgrado, emissora do exército alemão: primeiro, o som de um gongo indica para legiões e mais legiões de combatentes, que mais um dia de batalha chega ao fim. E então uma melodia suave e doce, fácil de memorizar, e impossível de esquecer, desliza pelo éter. E sobre ela incide a voz de uma mulher, algo áspera e açodada, cantando:


Vor der Kaserne Vor dem großen Tor Stand eine Laterne, Und steht sie noch davor, So wolln wir uns da wiedersehn, Bei der Laterne wolln wir stehn Wie einst, Lili Marleen.


Em frente ao quartel, diante da portada Pendia de um poste uma lanterna iluminada E se ainda estiver por lá É lá que vamos nos re-encontrar À lanterna nos encostar Como dantes, Lili Marleen...


Com os ouvidos pregados na melodia, Maclean - reencarnação virtual do agente secreto “by appointment to Her Majesty´s”, tantas vezes incorporado durante suas andanças pelo Oriente, por sir Richard Francis Burton, e já suspeito como inspirador do personagem James Bond, de Ian Fleming - parece intrigado com a distante Iugoslávia, de onde o alcançam aquelas sonoridades e onde nova missão secreta, dele e de uma pára-quedista-guerrilheira judia, chamada Hanna Senesh, o levará ao encontro dos partisans de Joseph Broz Tito, que resistem contra a invasão da “SS Germania”, de certo Oberscharführer. 4


A música é o código de confraternização dos exércitos de Hitler, mas o pelotão de Maclean, como, aliás, todo o exercito britânico, se põem na escuta. Os Tommies entendem pouco dos versos dos Fritz, encharcados de saudade melosa, e apesar disso, algo nesta canção a torna irresistível ao coração dos inimigos. Certamente, como a maioria de todos os soldados, Fitzroy Maclean acreditava piamente que aquela canção melíflua brotara em solo nazista. Mas estavam enganados.


Retro-narrativa - Berlim, 1ª. Guerra Mundial


Madrugada do dia 3 para 4 de abril de 1915, Kessel Strasse, Berlim. No passeio em frente ao quartel do corpo dos Fuzileiros da Guarda, o recruta Hans Leip, 21 anos, natural de Hamburgo e filho de um estivador, faz sua ronda de sentinela, contando as horas para o embarque ao front dos Cárpatos, na Hungria - guerra! O soldadinho sente o coração apertado, as unhas cravadas na coronha do fuzil. Nisso, lembra-se de Betty, codinome Lili, e também de Marleen: a primeira, filha de um verdureiro e sobrinha da dona da pensão onde Leip reside, e a segunda, enfermeira, filha de um médico da cidade de Rostock.


Dando suas passadas, rimas soltas vão brotando de seus lábios, e Leip se detém, retirando da jaqueta do uniforme um bloquinho de notas e um lápis, se apressando em esboçar os versos à luz embaçada de um facho. E esta é a versão que ganhará o mundo, narrada nas memórias de Hans Leip 5 , publicadas décadas depois. Nelas conta que, terminado seu plantão, correra ao quartel, e sobre o colchão do catre completara o poeminha romântico, "Canção de uma jovem sentinela”, com apenas três estrofes, que diziam (Versão improvisada - Frederico Füllgraf):


Vor der Kaserne Vor dem großen Tor Stand eine Laterne, Und steht sie noch davor,

So wolln wir uns da wiedersehn, Bei der Laterne wolln wir stehn Wie einst, Lili Marleen.
Unsre beiden Schatten sahn wie einer aus: Daß wir so lieb uns hatten, Das sah man gleich daraus.
Und alle Leute solln es sehn, Wenn wir bei der Laterne stehn Wie einst, Lili Marleen.

Schon rief der Posten: Sie blasen Zapfenstreich; Es kann drei Tage kosten ! Kamerad, ich komm ja gleich.

Da sagten wir auf Wiedersehn. Wie gerne wollt ich mit dir gehn, Mit dir, Lili Marleen.


Em frente ao quartel, diante da portada Pendia de um poste u´a lanterna iluminada E se ainda estiver por lá É lá que vamos nos re-encontrar À lanterna nos encostar Como dantes, Lili Marleen...
Nossas duas sombras eram uma só Era grande o nosso amor Paixão sem nó nem dó

Que os passantes nos vejam ali Juntos da lanterna a sorrir Como sempre, Lilli Marleen...

Avisa a sentinela Atrasaste a formação Três dias de castigo! Já vou, camarada, digo, sem afobação

E então dissemos adeus Quisera tanto ficar nos braços teus - só teus, Lili Marleen!


Ferido, em 1917, Leip é dispensado da tropa, retomando sua profissão de professor, em Hamburgo, onde se inicia nos ofícios de artista plástico e escritor, e tenta se reencontrar naquela Alemanha, cujo Kaiser fugira para a Holanda, e que da noite para o dia se tornara uma república, ao mesmo tempo conturbada e instigante, pois em Weimar florescem o gênio criativo e a ousadia, mas também viceja a conspiração revanchista.


Em 1925, Leip consagra-se como autor do romance "Godekes Knecht" / O criado de Godeke, enredo de pirataria, em gênero de capa e espada, premiado pelo jornal Kölnische Zeitung, e segundo ele, muito elogiado por Thomas Mann.


O artista e o nazismo


Em janeiro de 1933, os nazistas vencem as eleições do Reichstag, formando um governo, ditatorial, que fechará o Congresso e jornais da imprensa livre, e proscreverá os partidos políticos e sindicatos democráticos. Em Hamburgo, Hans Leip assiste à proscrição da "Associação nacional de escritores alemães" e do "Círculo Hanseático do Pen-Club“. Seus associados são perseguidos, e quem - como os grandes nomes da Literatura Alemã, de Brecht a Thomas Mann, de Stefan Heym a Alfred Döblin - não opta pelo exílio, é preso e sofre agressões físicas.


Hans Leip justifica sua permanência naquela Alemanha onde se apagavam as luzes da razão e da dignidade, porque não consegue pagar o tal "imposto sobre evasões do Reich". Não se filia ao partido nazista, mas para sobreviver como escritor, curva-se às exigências do ministro da Propaganda, Joseph Goebbels, inscrevendo-se na Reichsschrifttumskammer, a "Câmara de Letras do Reich".


Mais tarde, com o 3º. Reich em ruínas, tenta explicar-se, afirmando que nos doze anos de trevas nazistas tentara sempre ajudar os amigos em apuros. É digressão também usada em sua defesa, por Lei Riefenstahl, a "cineasta do Führer".


Leia mais: http://fuellgrafianas.blogspot.com/2010/09/lili-marleen-os-95-anos-de-um-mito_09.html

Nenhum comentário: