“Nili”, a Marleen judaica
Durante minha solitária pesquisa me deparei com a referência de um autor alemão, sem dúvida surpreendente: a de que Stefan Zweig seria autor de uma versão de “Lilli” para o hebraico 6. Mas a informação tinha dois problemas: não citava sua fonte, e a matéria, publicada há trinta anos, não estava assinada.
Após testar na Internet centenas de combinações de busca, as mais esdrúxulas, e trocar correspondências inócuas com arquivos históricos em todo o mundo, suspeitei que devesse arquivar Stefan Zweig. Mas teimoso, acabei descobrindo a edição de uma caixa com sete CDs de “Lilli Marleen”, pelo selo alemão The Bear Family.
Não tive dúvidas, na janelinha, “fale conosco”, do site da empresa, deixei minha pergunta sobre Zweig. No mesmo dia, Richard Weize, que não é secretária, mas uns dos donos da empresa, respondeu-me, solícito: “Do Zweig não sei nada, mas veja isso aqui” – e me enviou um calhamaço, do qual destrinchei a seguinte estória.
Em 25 de abril de 1944, a rádio A voz de Jerusalém põe no ar uma versão hebraica de “certo letrista, com interpretação de um cantor, ambos desconhecidos”. A reação do público é eufórica, e então a rádio esclarece que do nome “Lilli”, os soldados ouvintes fizeram sua própria versão, a da personagem Nili.
Quem, diabos, era “Nili”? E o enigma foi se desvelando: em primeiro lugar, “Nili” é um acrônimo do verso hebraico que diz: Netzach Israel Lo Jeschaker' – “Deus é fiel a Israel”. E fiel ao Talmud, durante a 1ª. Guerra Mundial, quando inicia o êxodo dos judeus europeus à Palestina, Nili era o nome de um comando judeu, clandestino, que apoiava a luta dos britânicos contra as tropas turcas no Oriente Médio. Já na 2ª. Guerra Mundial, Nili é o nome de honra adotado pela pára-quedista Hannah Senesh (1921-1944).
Nascida em Budapeste, e desembarcando no Oriente Médio, em 1942, Hannah vincula-se à Palmach, unidade da Haganah, que combatia árabes e britânicos, com atos de terrorismo. Como primeira mulher, em 1943, Hannah é admitida pela força aérea britânica, saltando sobre o território do Egito para salvar pilotos derrubados, e praticar atos de sabotagem.
Em março de 1944, Hannah é enviada a Bari, na Itália, onde muda de avião e salta sobre território da Eslovênia, depois se juntando por três meses aos guerrilheiros iugoslavos de Josip Broz Tito. Ao tentar cruzar a fronteira para a Hungria, seu país natal, é delatada e entregue à Gestapo. Levada a Budapeste, durante quatro meses sofre interrogatórios violentos. Julgada por um tribunal fantoche, nazista, é fuzilada em 7 de novembro de 1944, aos 23 anos de idade.
Lembrada como heroína de espantosa coragem, Hannah protagonizará a versão hebraica de “Lilli Marleen” ('Ani socher od Lili'), cujos versos dizem: “Dentre milhares de mulheres na cidade De teus olhos o pálido olhar Eu guardarei, Lili” 'Tenho saudades de ti, Lili... "
Na década dos anos 50, a rádio Kol Jerushalajm grava um compacto dessa versão, que acompanha a mudança dos estúdios da emissora, de Jerusalém para Tel Aviv. O infortúnio: durante uma reforma do prédio, a gravação é danificada, depois se perde definitivamente
Desconsolados, em 2004 os editores daquela versão contratam o musicólogo, regente de orquestra e pianista, alemão, Axel Weggen, que a re-grava, numa versão interpretada pelas cantoras Ariella e Nora Hirshfeldt, executada em julho de 2004, no Palais Aux Etoiles Studio, em Bremen.
Nesse mesmo período, em Berlim, Dan Kahn executa uma versão de “Lilli Marleen” em iídiche, e a cantora judia, Tamara, interpreta-a numa versão acompanhada pelo pianista Vladimir Shalit.
E o mistério da versão hebraica continua: a autoria musical de “Nili”, que homenageia Hannah Senesh, é creditada a Norbert Schultze, mas o nome do letrista judeu continua em branco – seria Stefan Zweig? E se o escritor se sentisse constrangido em assinar a letra de uma música cantada pelas tropas do mesmo regime que o obrigara ao exílio?
Do ocaso de Rommel à "Lilli" trash de Fassbinder
Acima - Winston Churchill e Erwin Rommel (dir.);
Abaixo - Hannah Schigulla em "Lili Marleen", de R. W. Fassbinder
Ridicularizada por intelectuais alemães do pós-guerra como "a choradeira da lanterna", como muitos de seus conterrâneos, contudo, sir Winston Churchill continuava fã devoto de "Lilli Marleen". Certo dia, no pós-guerra, durante um retiro de férias à Riviera francesa, entre uma e outra baforada no inseparável habano, sir Winston pede à banda do hotel que lhe toque a balada dos namoradinhos sob a lanterna.
Pedido prontamente atendido, o almirante viaja a ré no tempo e se emociona. Na noite seguinte, percebendo a presença de Churchill no salão, o maestro da banda não pensa duas vezes, tenta ser gentil, e manda ver a "Lilli" outra vez. Mas Churchill ergue a mão, manda parar a banda, explicando que dormira mal - I dreamed on Rommel! Num pesadelo lhe aparecera Rommel...
Mas Churchill não partilhava da maledicência e ciumeira de seu Estado Maior contra o ex-inimigo: He deserves our respect... - "ele merece nosso respeito", disse o almirante, porque "Rommel chegou a odiar Hitler e todas as suas maquinações, depois tomou parte na conspiração para afastar do caminho o maníaco e tirano, e resgatar a Alemanha. Por isso, pagou com a própria vida!” E lamentou: “Nas guerras sombrias da democracia moderna mal sobra espaço para o cavalheirismo.”
Falta de honradez também protagonizada mais tarde por Leni Riefenstahl, com suas "Memoiren", mal rimadas, em plena democracia do pós-guerra, estabilizada na Alemanha, em 1971, a artista quando velha, Lale Andersen, publica sua autobiografia 7, na qual se reinventa, reescrevendo a História de um ponto de vista que lhe permite justificar sua permanência na Alemanha de Hitler.
E é ficção que vai alimentar o roteiro "Lilli Marleen" (1981), de Rainer Werner Fassbinder, que além de preservar as meias-verdades de Andersen, contrabandeia meias-mentiras para a narrativa, como a suposta prisão de Mendelson-Lieberman (o regente e marido judeu de Andersen), torturado nas garras da SS - fatos jamais ocorridos -, ou ainda os audaciosos contrabandos de filmes sobre os campos de concentração, da personagem Willie, de Hanna Schygulla (aliás, Lale Andersen).
A rigor, naqueles dias, foi assaz modesta a vida pessoal de la Andersen, vida despojada de todo glamour barroco, incensado no filme de Fassbinder, porque longe de protagonizar a militante da resistência, a moça que cantava "Lili Marleen" nas ondas da Rádio Belgrado, não passava de Mitläuferin; sem dúvida algo gata-borralheira, insubordinada, mas simples "prosélita" do nazismo.
Inspirada nesta autobiografia, como realismo de cena ou "documento" histórico, a "Lilli Marleen" de Fassbinder derrapa sobre o fio da memória, em acrobacias fascinadas pelos climas soturnos, crepusculares, de "Os malditos" (1969), de Visconti (que justapondo cenas da chacina de Ernst Röhm, ao clima festivo de cervejaria, insinua a teatralidade e as semelhanças entre uma suposta estética nazista e o gênero da ópera); pelo glamour plastificado de "Cabaret" (1972), e pelas evocações demoníacas de Liliana Cavani, em "O porteiro da noite" (1974) - tudo celebrado como orgia panteísta, ou, se quisermos, como genuína viadagem estética (adjetivação aqui sem qualquer conotação sexual), ontem e sempre imprestável, porque mistificadora, do fenômeno nazista. Infelizmente, a décadence marron não se limitou a sessões sado-masô de puteiro de luxo, com direito a couro envernizado, peitos, bundas e fálos a rodo, mas articulando-se como ideologia da exclusão e do extermínio.
"Lilli" e a Discoteca de Babel
E “Lilli” continuou marchando...
“La Biblioteca es tan enorme que toda reducción de origen humano resulta infinitesimal", escreveu J. L. Borges, a meio caminho de sua "Biblioteca de Babel" : “(...) Cada ejemplar es único, irreemplazable, pero (como la Biblioteca es total) hay siempre varios centenares de miles de facsímiles imperfectos: de obras que no difieren sino por una letra o por una coma" - ironia de Borges sobre a historia da escrita, que cai como luva sobre a longevidade de "Lilli Marleen".
Nos primeiros anos da guerra fria, os EUA tentam recuperar os direitos de "Lilli Marleen", agora enviando Lale Andersen em turnê pela Coréia e a Indochina, tentando popularizá-la também nos países do recém-formado bloco soviético, mas a canção enfrenta forte rejeição na RDA e também na Iugoslávia de Tito - justamente o lugar sobre o qual devaneava Fitzroy Maclean naquelas madrugadas sob o céu estrelado da Líbia, enfeitiçado pela voz, “rouca, sensual, nostálgica, doce como o açúcar… que parecia desprender-se para tocar-me, espalhando sobre os acordes tocantes da música, aquelas palavras loucamente sentimentais (...)".
Entre as sonoridades exóticas, estão as versões em japonês e finlandês, e como intérpretes tão dissimiles, figuram Greta Garbo, Edith Piaf e a japonesa Kanashii Michi, sem esquecer a anglo-francesa, Amanda Lear, que em 1978 gravou uma mal-parida versão "discothéque" (álbum "Never Trust a Pretty Face"). Escrita do ponto de vista de um soldado, mas sempre interpretada por mulheres, nas décadas de 1950 e 1960, como sintoma de enorme capacidade de sobrevivência do mito "Lilli Marleen", nas hostes masculinas se somavam ao coro, Bing Crosby, Al Martino, Perry Como, Jean Claude Pascal e outros, aqui esquecidos.
Outro sintoma de teimosa vitalidade, sobretudo como indelével ritual de guerra, é que bastava eclodir um novo conflito - na Indochina, Coréia, em Israel ou no Vietnã - e o faturamento disparava aos altos, em movimento oposto às bombas que caiam dos aviões e massacravam em terra. Não foi por acaso que na década dos anos 1980, a viúva do letrista Hans Leip recebia em média 60 mil francos suíços (à época, aprox. 50 mil dólares) por ano com o recolhimento de direitos autorais pela GEMA. Sem falar que Norbert Schultze, o compositor, já era milionário. Também compositor da marcha nazista, "Panzer rollen in Afrika vor" (Tanques avançam sobre a África), Schultze não teve papas na língua ao comentar o sucesso comercial auto-sustentado de "Lilli Marleen": "A música só podia crescer com a guerra, porque então o desespero é grande."
E "Lilli" continua marchando neste início de terceiro milênio: entre outras versões contemporâneas, conste a da banda Atrocity, de 2000, a do grupo italiano, Camerata Medio Lanese, e outra ainda, da banda de rock alemã, Eisregen Thüringen. Em 2005, para ensejo do 60º. aniversário do desembarque dos Aliados na Normandia, a cantora Patricia Kaas chacoalhou o esqueleto de "Lilli" em transmissão televisiva de Mondovision, mas ainda marcados pelas atrocidades (eis aqui um recado para a banda Atrocity) das Einsatzgruppen da SS, os poloneses rejeitaram a alegoria.
"E a lanterna?"- alfineta o ensaísta alemão, Jan Feddersen, na divertida crônica "526 minutos sob a lanterna“ 8: "a imaginação gostaria que a lanterna fosse algo assim como um luzeiro em tempos sombríos - um guarda-chuva luminoso para alguma sorte de privacidade, incapaz de existir, sobretudo em tempos de guerra e no âmbito dos quartéis“.
Epílogo - a sobrinha de Freud
Desde 2006, circula uma sub-lenda do mito, sibilando que Leip estivera apaixonado pela atriz austríaca, Lilly Freud, filha de Marie, irmã de Sigmund Freud, que durante mais de uma década viveu em Berlim, de onde retorna a Viena. Segundo a versão, a atriz resolvera deslembrar-se de Leip em 1917, casando-se com o ator e diretor de teatro, Arnold Marle. Só então Leip teria re-escrito o poema, no qual chorava a perda da namorada Marlé, criando o segundo avatar na trajetória de "Lili Marleen".
Nascida em 1888, Lilly Freud Marle inaugurava carreira muito aplaudida na segunda metade dos anos 20, como intérprete e declamadora, celebrizando-se com textos de Rabindranath Tagore. Mas em 1938, quando Hitler anexou a Áustria, a família Freud, de judeus assimilados, começa a sofrer perseguições. Como lembra Elisabeth Roudinesco, “aferrado à idéia de que somente a civilização, isto é, o cumprimento de uma lei imposta ao poderio absoluto das pulsões assassinas, permitiria à sociedade escapar de uma barbárie ansiada pela própria humanidade", segundo a ótica nazista, Freud era uma aberração, e sua psicanálise, uma “ciência judaica".
Em 2003, o psicanalista alemão, Christfried Tögel, diretor do Sigmund Freud Zentrum, de Magdeburg, faz uma descoberta desconcertante: durante suas pesquisas em partes do acervo de Freud, arquivadas na Biblioteca do Congresso, em Washington, depara-se com os originais intactos de uma biografia do fundador da psicanálise, escrita por sua sobrinha Lilli Freud Marle, referida num artigo de sua irmã mais velha, Margarethe Freud, publicado no “Neue Zürcher Zeitung”, de maio de 1948.
Informação solenemente ignorada pelos pesquisadores de Freud, talvez porque suspeitassem de sua credibilidade, Tögel checa a autenticidade do texto, por ele finalmente publicado na Alemanha, em 2006 9. No livro, Lilly Freud Marle narra os episódios que em agosto de 1939 culminam com a fuga da família Freud para Londres, onde o tio virá a falecer poucos meses depois.
Em conversas espaçadas, ocorridas entre 1945 e 1947, com Martha Freud, sua tia e viúva do psicanalista, ela faz anotações biográficas sobre os aspectos lúdicos e conviviais no cotidiano do clã Freud, em Viena e no exílio londrino, numa espécie de narrativa profana, à margem do consultório e do gabinete científico.
Prefaciando o livro, Tögel detalha o artigo de Margarethe Freud com uma revelação ainda mais desnorteadora: a de que Lilly fora a verdadeira musa inspiradora da letra escrita por Hans Leip, e da música “Lili Marleen”, depois interpretada por Lale Andersen. A versão é reiterada pelo neto de Sigmund Freud, Anton Walter Freud, filho de Martin, o primogênito do psicanalista. Procurado por Tögel, Anton Walter lhe conta que sua prima, Lilly, fora namorada e abandonara Hans Leip, o autor da mítica balada, para casar-se com Arnold Marle.
A traição teria magoado e indignado Leip a tal ponto, que este resolvera marcar indelevelmente seu poema da “puta do soldado”, com o nome da ex-namorada. Já Leip desmentiria categoricamente esta versão, numa carta escrita a Margarethe Freud: ”Escrevi a canção na qualidade de fuzileiro da guarda, na véspera da mobilização para a Rússia, em abril de 1915 – ela não foi dedicada a nenhuma dançarina, nem a qualquer declamadora, e sim, a duas moças simples, das quais uma se chamava Lilli, e a outra, Marleen [...]”. Lilly Freud Marle, porém, jamais se pronunciou sobre a polêmica, dessa forma adensando as brumas do mistério.
Em e-mail que me enviou em 17 de abril de 2010, o Dr. Tögel diz não haver provas documentais do pretextado envolvimento entre o autor da canção mítica e a sobrinha de Freud: “A família Freud, principalmente Walter Freud, com quem mantive longa amizade, sempre repetiu essa estória. Mas eu prefiro admitir que foi alimentada, mais porque se insinua como teoria instigante, do que efetivamente sustentada por fatos”.
A carta de Margarethe, publicada no livro de Lilly Freud, editado por Tögel, foi prontamente reverberada por outros dois livros, "Lili Marleen. Canción de amor y muerte" (Alcantilado, Espanha, 2008), de Rosa Sala Rose, e "La véritable histoire de la plus belle chanson d’amour de tous les temps" (Télémaque, França, 2010), de Jean-Pierre Guéno. Em seu livro, Rose afirma que, exilada na Suécia, Lilly Freud Marle esteve "reducida a la miséria”.. Tögel replica energicamente: “definitivamente, Lilly jamais demorou-se na Suécia”.
O que importa, de fato, é a potencialidade de uma ironia histórica, insólita: se foi mesmo Lilly Freud a musa inspiradora, o fato comprovaria que em sua idolatria da "Lilli", a Wehrmacht e a SS de Adolf Hitler estavam homenageando - quem diria! - uma garota judia...
NOTAS
¹ “The German Campaign in the Balkans (Spring 1941), U.S. Army Center of Military
History Publication 104-4 (1986);
² Joseph Goebbels: "Das-eherne-Herz" -1942; Adrian Stewart: "The Early Battle of
Eighth Army: crusader to the Alamein Line 1941-1942" (2002);
³ Bernd Hartmann: ”Die Geschichte des Panzerregiment 05” - A história do 5º.
Regimento de Blindados - Ed. Bernd Hartmann (2005);
4 Fitzroy Maclean: "Eastern Approaches" (1949);
5 Hans Leip: "Ein halbes Jahrhundert" (1965); "Hans Leip” (1968);
6 Der Spiegel: “Frühling für Hitler und Lili Marleen” (19/01/81);
7 Lale Andersen: "Der Himmel hat viele Farben" / O céu tem muitas cores (1971);
8 Jan Feddersen, "526 Minuten unter der Laterne", Die Tageszeitung (19/11/2005);
9 " Lilly Freud Marle: “Mein Onkel Sigmund Freud. Erinnerungen an eine große Familie" /Meu tio Sigmund Freud - memórias de uma grande família, Aufbau (2006).
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