10 novembro 2017

Frederico Füllgraf - Muro de Berlim: o ato falho que o derrubou


Crônica


Berlim, primavera de 1989.


De passagem pela cidade onde havia feito a faculdade, me formado e residido durante dez anos de minha vida, em companhia de Leticia Vota, minha então namorada, celebrei o 1º. de Maio junto à colorida multidão convocada pela central sindical DGB aos gramados do antigo Reichstag, naquela oportunidade ainda funcionando como museu, colado ao Muro. 

Atrás dele, nos saudava o Portal de Brandenburgo, com suas colunas dóricas, em réplica neoclássica, solidamente fincadas em solo da RDA – a República Democrática Alemã, como era conhecida oficialmente a Alemanha Oriental. 

No lugar da quadriga greco-romana, que a encimava desde seus primórdios, a bandeira da RDA, e outra, com o vermelho-sangue da utopia, tremulavam alegremente sob um céu de brigadeiro.

O Muro

Onde nos encontrávamos, a Avenida 17 de Junho, de Berlim Ocidental – que na verdade começa na Praça Theodor Heuss, com o nome de Bismarck Strasse, em seguida mudando para Kaiserdamm, e que até o fim da Segunda Guerra Mundial, mas só depois da Ernst Reuter Platz, se chamava Charlottenburger - ali, pois, a interminável avenida, rebatizada de 17 de Junho – mais uma vez desviada pelo Obelisco da Vitória, que entrou para a história do Cinema com o anjo coruscante eternizado em “Asas do desejo”, de Wim Wenders - era contida por um muro com três metros de altura, sobrecabado com tubos cem por cento esféricos para impedir que mãos o agarrassem. 

Depois desse primeiro muro estava um corredor, chamado Niemandsland – literalmente “terra de ninguém”, também conhecida por “corredor da morte”, com a largura de uma rua estreita, por onde circulavam as patrulhas motorizadas da RDA. Por sua vez, o acesso à terra de ninguém era protegida por uma barreira de obstáculos antitanque, fundidos em aço e cruzados em “x”. E atrás (ou dependendo do ponto de vista, em sentido oeste: à frente) deles, outro muro com medidas comparáveis ao primeiro. 

Uma “linha Maginot” com seus 80 metros de espessura e armada até os dentes – eis a compleição de um “muro”, que muita gente imaginava ser aquele tapume furado dos velhos estádios de futebol brasileiros.

Nesta geografia de Guerra Fria, o Portal de Brandenburgo se situava em “terra de ninguém”, uma ironia que vai se explicar seis meses mais tarde. 

"Tudo o que é sólido se desmancha no ar"

Erguido em agosto de 1961, para proteger a RDA da infiltração pelo fascismo e do assalto pelo imperialismo (aqui explicando que jargões oficiais nunca usam aspas), do outro lado do muro a grande avenida, cortada, retomava seu curso, atravessando boa parte do antigo centro histórico, até a Alexanderplatz, com seu nome original: Unter den Linden. 

Foi ali perto e naquela mesma manhã de 1º. de Maio, que na Karl-Marx-Allee (alameda que os camaradas, depois arrependidos, em 1945 haviam batizado de Josef-Stalin-Allee), um amigo - então Secretário da Agricultura do Paraná e marxista in petto – presenciava a versão de um 1º. de Maio que todo esquerdista que se preze sempre sonhara em passar em revista: a marcha da classe operária, sua juventude vestindo o azul da fidelidade, seguidos pelos Kampfgruppen – unidades paramilitares de defesa das fábricas - tudo coroado pelo desfile das forças armadas de defesa do socialismo. Mas - just in case! - com uma retaguarda de 400 mil soldados soviéticos acantonados nos velhos quartéis nazistas da hinterland da ex-capital do Reich.

Assim me descreveu a apoteose o amigo deleitado, e eu citei seu ingênuo fascínio numa reportagem para o Caderno B do Jornal do Brasil, com uma licença poética maldosamente emprestada do livro de Marshall Bermann: “Tudo o que é sólido, se desmancha no ar” (na verdade uma ironia de Karl Marx, usada por Berman para vender seu livro). 

O que o amigo e eu não sabíamos, é que naqueles dias o povo da RDA já fazia reuniões de protesto nas igrejas do país, o caldo começando a engrossar. Mas se alguém naquele 1º. de Maio do lado ocidental me perguntasse, se o Muro fora construído para ficar, eu teria respondido que sim, apesar de não acreditar na eternidade, 

Verão de 1989: o SED e as fugas em massa da RDA


Detalhe geralmente ofuscado pelo frenesi na cobertura sobre a queda do Muro, é que no verão de 1989 em torno de 100 mil alemães orientais em férias nos países do Leste, não queriam mais retornar, buscando asilo nas embaixadas da Alemanha Ocidental na Tchecoslováquia, Bulgária e Hungria. Milhares, ao alcançarem a fronteira da Hungria com a Áustria, simplesmente ignoraram as barreiras da fronteira, desembestando Áustria adentro; os guardas húngaros apenas bocejando de tédio. 

Esse era o pano de fundo de uma reunião de emergência do Comitê Central (CC) do SED (Partido Socialista Unificado da Alemanha), que decidira liberar viagens aos cidadãos da RDA para qualquer país do mundo. 

A pedido do CC, a autorização fora redigida por oficiais do ministério do Interior e do serviço de espionagem StaSi, a famigerada “polícia de segurança do Estado”. Aprovadas em brancas nuvens, diante dos “fósseis” da velha guarda, Egon Krenz - o novo czar do partido, que um mês antes destronara Erich Honnecker e a velha guarda com um golpe de mestre há muito programado - pediu que o porta-voz Günter Schabowski divulgasse as novas revolucionárias na coletiva à imprensa internacional, programada para o final da reunião.

O lance de Krenz era uma aposta: a dívida externa do país beirava os 25 bilhões de dólares e a Economia da RDA estava há muito pendurada no soro da odiada Alemanha Ocidental. Com a liberação das viagens, Krenz pretendia aliviar a pressão popular, sobretudo ganhar tempo, salvar a RDA do mergulho no abismo.

O ato falho de Schabowski que derrubou o Muro


Mas o que acontece, então? 

Estória virtualmente desconhecida no exterior, e até há pouco tempo mal contada, o Muro de Berlim caiu como efeito-dominó numa cadeia de conspirações, armações, mas também de um imprevisto. 

Quando Schabowski, mais tropeçando no texto do que realmente lendo o bilhete para a imprensa internacional, que resumia as deliberações do CC sobre a permissão de viagens, subitamente o jornalista Ricardo Ehrman, correspondente da agência italiana, ANSA, o interpela, perguntando (veja o vídeo ao final do presente texto): - Já está valendo a permissão?

- Perdão? - replica Schaboswki. E quando Ehrmann repete a pergunta, insistindo no prazo para a entrada em vigor das novas medidas, Schabowski procura a resposta no bilhete, e não a encontrando, responde: “Olha....que eu saiba, é pra já!”. 

Foi a bomba! 

Mas de seu efeito Schaboswki apenas tomaria conhecimento em casa, acomodado diante da TV, onde assistia, atônito, ao assalto e à abertura do Muro, depois que a população havia recebido a notícia pelas TVs ocidentais.

Eram pouco mais de nove horas da noite, e a notícia tinha se espalhado aos quatro ventos.

Sacudido por telefonemas, reclamações e ameaças, foi quando Schabowski se dá conta da tremenda burrada que cometera, porque o bilhete levava um aviso explícito: “Divulgação vetada até às 4 da manhã de 10 de novembro de 1989”. 

O porta-voz simplesmente atropelara a instrução, provocando a corrida ao Muro.

Ato falho ou armação?

Rosto crispado, em uma entrevista gravada um ano após a queda do Muro, Günter Schabowski admite que recorrera a um psicólogo para tentar explicar (-se), o que lhe tinha dado nos miolos naquele final de tarde de 9 de novembro de 1989. 

Nesta altura já expulso do SED, e vagueando desempregado pelas ruas da Berlim, sem muro, diz, sem vergonha alguma: “Vá saber, talvez foi mesmo um ato falho, porque um regime daqueles não merecia outro desfecho”. 

Hoje, o comunista de carteirinha Günter Schabowski é filiado ao CDU - o partido democrata-cristão, conservador, de sua ex-arqui-inimiga na RDA, a Chanceler Angela Merkel. 

Mais de vinte anos depois, novos fatos sobre aquele fatídico e delirante 9 de novembro de 1989 emergem dos bastidores da História. 

Um deles é que o jornalista Ricardo Ehrman foi efetivamente “cutucado” por Günter Pötschke a interpelar Schabowski. Pötschke, que não pode mais confirmar o lance, porque morreu recentemente, era editor-chefe da agência oficial ADN, da RDA, e também membro do comitê central do SED. 

Uma cópia do bilhete que resumia as novas instruções de liberação de viagens descansava sobre o tampo de sua escrivaninha, mas também vetada para divulgação antes das 10 da manhã do dia 10 de novembro. Sendo velho conhecido de Ehrman, Pötschke o encorajou para furar o bloqueio noticioso, com isso abrindo espaço para sua própria divulgação.


Mas a noite prometia outros imprevistos.

Uma equipe de TV da Alemanha Ocidental, não identificada, mas a serviço do canal a cabo da revista Der Spiegel, embrenhara-se “território adentro”, em Berlim Oriental, tomando conhecimento da notícia dada por Schabowski, num boteco do bairro rebelde de Prenzlauer Berg. 

E “seguindo o povo, para onde o povo vai”, os documentaristas subvertem aquela máxima do partido, captando cenas dignas de um Moisés dividindo ao meio as águas do mar bravio, para dar passagem ao povo escolhido.

No posto Bornholmer Strasse, de entrada (mas nunca de saída) da RDA, a multidão já se aglomerava, cobrando em coros altissonoros “Wir wollen raus!” (Queremos sair!) e “Macht auf das Tor”! (Abram os portões!). 

E diante da câmera deslinda-se a História.


Com movimentos ainda imperceptíveis na guarita de controles, oficiais das tropas de fronteira e da temível StaSi estão confusos. Ligam para seus superiores, que não conseguem dar-lhes instruções objetivas, porque não estão menos desnorteados. 

Sentindo-se protegida pela presença da mídia ocidental, a massa começa a levantar o tom de voz, o caldo atingindo o ponto de fervura. É quando entra em cena outro “traidor” daquela noite: Tenente-Coronel Harald Jäger, da Stasi, que reúne os subordinados em sua sala, para calçar-se na decisão que vai tomar. Vinte anos depois, diz em entrevista: - Eu queria saber deles, o que deveria fazer. E eles responderam: ´Você é que tem que saber, ora essa, o chefe é você!´ E eu respondo: ´Devo permitir que os cidadãos da RDA saiam? Ou devo abrir fogo? – pelo amor de Deus!” (...) Depois pensei: "já encheu o saco, agora vou agir por conta própria."


E Jäger toma sua decisão, sozinho, sem ordens superiores: manda erguer a cancela, melhor: a eclusa – e sem qualquer controle a torrente humana desembesta rumo a Berlim Ocidental.

 Naquele momento, diz Stefan Aust, diretor do documentário, com o Muro cai também a RDA, e desfaz-se em frangalhos um sistema autoritário que reinava de Berlim a Moscou, de Vilna a Bucareste, declarando página virada da História aquela ordem mundial, obsoleta, do pós-guerra – instante histórico em que, quarenta e quatro anos após o silêncio das armas, a 2a. Guerra Mundial termina de fato.


Centro de uma trama até hoje só parcialmente explicada, Schabowski e seu bilhete ganharam a aura do mitológico. 

Schabowski sabia mesmo o que estava lendo para os jornalistas? E os jornalistas: quantos tinham aceitado fazer perguntas previamente combinadas? Um baralho marcado para atropelar a “turma” de Egon Krenz, recém-chegada ao poder? Por acaso Schabowski tentou jogar seu próprio jogo, entrando para a História como o herói que detonou o Muro? E se Krenz sabia do bloqueio da notícia até as 4 da manhã - por que insistiu em divulgá-la? Aquilo, tudo, foi mero “acaso”, ou uma traição coletiva do inconsciente também coletivo?


Um ano mais tarde, o cáustico, esquerdista e saudoso dramaturgo Heiner Müller, empossado como diretor do teatro Volksbühme, me convidaria para participar do primeiro aniversário da queda do Muro, com um programa assaz irônico.

Ao escolher a leitura dramática de “A missão”, para celebrar à sua maneira o evento, Müller estava interessado em discutir o lado trash, a nota de rodapé verdadeiramente esdrúxula, hilariante, da História. 

Personagem central da peça “A missão”, Dubuisson é enviado ao Caribe para exportar a revolução de 1789. Mas quando seu barco se aproxima da costa exuberante, bordejada por aquele mar cor de esmeralda, Dubuisson, que também é dono de engenho de açúcar e de escravos africanos, muda de idéia; perpetuando-se como novo governador da ilha. Daí a frase corrosiva de Muller: “Onde a paisagem é bonita, espreita a traição!”.


Como paisagem bonita, o cartão-postal coruscante de um “supermercado” chamado Berlim Ocidental certamente exerceu fascínio inconfessável em não poucos camaradas da liderança da RDA. 

A ironia dessa noite, já na Kurfürstendamm – a rebrilhosa Champs Elisées prussiana – é que os orientais não correram atrás das roupas de griffe, mas das ordinárias bananas da marca Chiquita, exportadas pela famigerada United Fruit. - para Muller e outros, prova ilustrativa de que a fome dos orientais era por uma sórdida “República de Bananas” (algumas pessoas não gostaram da comparação).

O bilhete de Schabowski

O ato falho de Sahabowski




Fotos: divulgação

5 comentários:

marc ms disse...

Excelente teu artigo. Assisti um documentário sobre o episódio pela televisão sueca . Vou compartilhar no Facebook . Valeu Frederico !

Unknown disse...

Muito interessante e ilustrativa esta Crónica sobre os últimos dias da RDA. Há ainda muitas páginas de " História escondida" por escrever. Estas são um exemplo sendo o seu autor um sagaz e inteligente investigador. Os meus parabéns.

Manoel de Andrade disse...

Não conheço os meandros dessa história, mas conheço o sabor da História, e você Frederico, nos oferece aqui um apetitoso aperitivo. Ler teus textos é como servir-se com o melhor cardápio. Esta crônica embriaga, é um vinho capitoso. Tua sagacidade com as palavras me traz saudade do tempo em que, no Bar Stuart, aqui em Curitiba, você, o Cleto de Assis e eu, nos encontrávamos, no fim das tardes, para trocar nossas figurinhas.

Saudades, meu amigo e aquele abraço..., Maneco

Marcia de Almeida/ Em dia com a cidadania disse...

Muito bom.Pena que não dá pra compartilhar.Bj

Frederico Füllgraf disse...

Obrigado, Marcia, mas basta copiar e postar o link. abraços