26 outubro 2010

Frederico Füllgraf - Play it again, Oskar!


Fotos: Google.de

Crônica de Berlim


Poetas morrem de overdoses: de versos, droga ou loucura; em casos extremos, de fome, ou de bala do marido da amante. Já Oskar Huth, o ébrio virtuose, derrapou sobre uma partitura e despencou num fosso, entre uma clave e um si-bemol. Em vida foi o que os berlinenses chamam de Original: viajado, erudito, amante da boa tertúlia, e, sobretudo, estradeiro; subentendido não como transgressão criminosa, mas como atributo de pessoa, digamos, algo avessa ao trabalho.
Flaneur, Oskar era um Baudelaire prussiano: tinha no sangue o mapa das avenidas e alamedas, das colunas e estátuas, dos arcos e viadutos e, sobretudo, dos Kneipen; os botecos. Não andava: parecia deslizar pela cidade. De olhos fechados.
Conheci-o, e já beirava os sessenta anos de idade. Irrompeu no bar Litfass, do também saudoso português, Antonio, trajando incombinável, berrante gravata cor laranja sobre camisa cor verde; desarrumação acentuada por um paletó violeta; surrado. Tinha prazer em esfarinhar a má educação, modismo antiautoritário da época, com implacável cerimônia, mas sem empáfia: não resistia ao hábito de cumprimentar as damas, beijando-lhes as mãos – atitude extemporânea, que nele resgatava o desprezado (mas, ai, tão desejado!) Kavalier à moda antiga, com isso reforçando a colorida, etílica e divertida decadência da então cidade intra-muros.
Contumaz, neste mesmo tom fin-de-siécle (do XIX, pois já contávamos 1980), apesar da minha irritação, Oskar saudava-me como “mein Freund vom Oberen Orinoco” / “meu amigo do Alto Orinoco” – rude equívoco territorial que remetia àquela boçalidade geográfica de filmes B, hollywoodianos, nos quais chiquitas-bananas bailavam rumba em Coupakébéna... Carmem Miranda?Oh, nein - gringos jamais! Naquele faiscante átimo bolivariano, Herr Huth reincorporava a odisséia do inebriante Humboldt às “regiões equinociais do novo continente”. Contudo, seu fascínio não brotava unicamente de seus modos educados, fora de ordem, mas de sua aura de alemão marginal, cuja coragem era cochichada em prosa e verso, naqueles tempos (noves fora o Che Guevara) tão carentes de heróis.
Quando inspirado, empertigava-se ao piano sebento, com teclas amareladas pela ação da fumaça dos cigarros de muitos anos, parecendo perfeita réplica do “Pau d´água” - vinil muito tocado nas festas dos meus pais, em minha infância, ilustrado na capa com um pianista bêbado junto a um piano, idem. Deste, Oskar conseguia arrancar harmonias oblíquas para a embasbacada platéia: solenes fugas de Bach, aqueles estertores de Billie Holliday (“He is my maaaan...”), uma chanson lacrimosa de la Piaf...
E nestes concerti buffi jamais faltava uma loura quase fatal, derramada sobre o realejo, como falsete de Greta Garbo, traçando com os olhos John Gilbert ao piano, em Flesh and the Devil. Apostei que um dia ele adentraria o bar em baixo astral e – de staccato a furioso - atacaria de Hindemith; só para contrariar.
Mas Oskar era movido por inabalável bom humor. Quando chegava recém-desperto, com profundas olheiras, roxas, descabelado, e a barba com três dias, desculpava-se com deferência, re-pescando no céu de chumbo os tormentos da noite anterior: “passei da conta, Brüderchen (“irmãozinho”), bebi o rio todo, encharquei até a alma”.- alegoria emprestada do Spree, rio que corria de leste a oeste, por baixo do Muro, impassível à divisão da cidade.
Filho de músico, desde a tenra idade acompanhara o pai a bordo de uma charrete, em missão profissional. Viajavam por Berlim e a província de Brandenburgo, consertando e afinando órgãos de igrejas, devolvendo a alegria a padres e pastores, recebendo em troca seu pró-labore e a promessa de uma vida eterna. Foi assim que a música entrou na passagem terrenal de Oskar, quem como poucos sabia que a eternidade.... - ora, essa se arrebata ao instante! 
Mas o que tornaria sua biografia digna de um longa-metragem foi a 2a guerra, que silenciou seus Lieder, substituindo-os pelo assovio tenebroso de bazucas, tanques e bombardeiros, fechando o céu sobre Berlim.
Antes da minha volta ao Brasil, tínhamos combinado uma entrevista para um semanário brasileiro, tendo como locação a gávea do Obelisco da Vitória (vitória sobre a França, em 1870), que se situava a poucas quadras da casa onde eu morava, no Tiergarten. Isso mesmo: aquela coluna Bismarckeana, empoleirada por um gigantesco e coruscante anjo dourado, que, anos mais tarde, Wim Wenders levou para a história do Cinema como ícone de “Asas do Desejo”.

Indisciplinado, alemão às avessas, Herr Huth não compareceu. Deixou-me babando pela narrativa até o próximo encontro. No bar... Certamente porque o anjo não servia bebidas, mas apenas uns excelsos e insípidos bafejos, sem álcool, sobre a arte de elevar-se às alturas - essas bizantinices esvoaçantes de querubins e aeronautas. 
Ora, cá embaixo, eclodira a grande guerra. Alistado no exército, Oskar desertara em seguida, entranhando-se na clandestinidade. Convencido de que seu paradeiro era farejado, triscou um criativo despiste: entregava cartas e cartões postais a amigos viajantes, com a ordem para aguardarem o bombardeio considerado terminal, de cidades inusitadas, e então postarem os sinais de vida aos seus familiares, espantados e aliviados. Dado por morto, Oskar renascia em cada batalha...
Sobreviveu aos seis anos da guerra como falsário de identidades, passaportes e outros documentos (para judeus, comunistas e clientes menos recomendáveis), só abandonando seu bunker no dia da conquista de Berlim pelas forças aliadas.
Interrogado por norte-americanos, teria lhes recomendado uma “receita histórica” para seu país em ruínas: - Dividam-no em quarenta partes e nunca mais haverá guerra! Os ianques se entreolharam, riram constrangidos, e prometeram pensar na proposta. Eis que, em 1948 a Alemanha estava partida em duas, e Berlim “de quatro”, digo: dividida em quatro “zonas” de domínio militar – geografia e história hoje superadas, mas de autoria reivindicada por Oskar. Que ria treteiro, ajeitando a gravata torta, insinuando solenidade. Divertia-se com a pasmaceira dos cristãos diante de sua fanfarronice, e apostava em sua perpetuação como mito.
E tentando arrancar da música o imorredouro, Oskar, o Airoso, maquinou um invento irretocável, primoroso: um piano com “teclado aerodinâmico”. Revolucionário, porque profundamente ergonômico, seu conceito baseava-se na observação de que, durante um concerto com duração média de noventa minutos, um pianista aplica várias centenas de quilogramas de força ao teclado:  – “o recital foi uma apoteose, já o pianista está um lixo!” - bradava Oskar, a cabeleira despenteada. Substituindo o teclado convencional, fixo, por outro, deitado sobre um colchão de ar, o espirituoso borracho pretendia imprimir a sustentável leveza do toque à arte de conduzir o piano.
Patenteou sua idéia, e uma confraria de amigos criou o “Fundo Oskar Huth”, dotado de 5 mil Euros, em valores atuais, e destinado ao desenvolvimento tecnológico da criativa engenhoca.
Havia, porém, uma condição: nenhum centavo do fundo deveria ser “malversado”, usado para fins que não os “estritamente pianísticos”. Crônica bêbada há muito anunciada, a subversão do teclado morreu na casca, digo: na canjebrina. Mal interpretando a cláusula do contrato, Oskar confundiu fundos com sumidouro: certa noite mergulhou no leito abissal de uma garrafa e dele não mais retornou. Imortalizou-se na arte da fuga.

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