05 fevereiro 2012

Frederico Füllgraf - Sobre Gauguin, Charlie Ching e a bomba


Crônica

Era 5 de setembro de 1993, ensolarado, como soem ser quase sempre os dias na Micronésia. Teste número 124: a terra treme no Taiti. No subsolo, o ventre do vulcão se contorce, acima dele o mar se agita, deita espuma branca pela boca. Jovens ensandecidos lançam coquetéis-molotov e bradam: "Franceses, go home !". Atravesso a madrugada navegando por controle remoto entre CNN, DW-TV, TV5, TV-E... à procura de imagens, de novidades de Mururoa. Dá-me vontade de ligar para Charlie, em Papeete, mas a agenda  com seu número de telefone está em alguma caixa da mudança, ainda não desembalada. 

Conheci Charlie Ching, um taitiano de descendência chinesa, em 1987, em Nova York. Ele tinha acabado de sair da prisão em Papeete, por motivos semelhantes aos de Gauguin, em 1901: "conspiração contra a ordem colonial" - a do chicote e da escopeta de 1890, e a da bomba atômica do final do séc. 20. 


O que segue são apenas devaneios, imagino-os como nota de rodapé subversiva dos
manuais de História da Arte, ou talvez da arte de contar a História de reverso: a crescente identificação do homem Gauguin com o modo de vida natural dos nativos, sua solidariedade com os direitos naturais dos taitianos, pelos quais, quase cem anos depois, Charlie Ching continua a lutar. Durante seus últimos dois anos de vida Gauguin encoraja-os  a boicotarem a Igreja (a imposição da moral branca, colonialista) e a administração colonial francesa, que começara exigir o  pagamento de impostos. Em 1901, Gauguin  choca-se frontalmente com as autoridades francesas, é  preso e condenado a pagar uma pesada multa.

Trama paralela: Em 1987, Charlie Ching atravessa o Pacífico e os EUA, de costa a costa, para dar seu testemunho sobre trinta anos de testes nucleares franceses em Mururoa, na 1a. Conferencia Global das Vítimas da Radiação, realizada nos salões do nobre e decadente Hotel Roosevelt, do Big Apple. O depoimento de Charlie com  mais de 45 minutos de duração, inaugura as filmagens de "Burning Sand" (Areia de Fogo) - uma co-produção entre Fundação do Cinema Brasileiro, Filmoffice Hamburg e minha produtora. O filme, interrompido e reescrito várias vezes e por vários anos, não tem prazo para estréia.

A Mururoa de Charlie é como a Pounaouia de Gauguin: uma praia idílica, onde estão sentadas suas "Duas Mulheres ... ", pintadas em 1891. Não me canso de olhar para elas...

- Parto com dois anos a mais, mas vinte anos mais jovem... mais bárbaro... Sim, os selvagens ensinaram muitas coisas ao velho civilizado, muita coisa sobre a ciência de viver e a arte de ser feliz ! - escreve Gauguin a um marchand de Paris, ao deixar o Taiti pela primeira vez. Mas no cais do porto de Papete, Tehura,  uma bela vahiné (nativa) e amante abandonada por Gauguin, chora noites sem parar. 
Na praia, as "Duas Mulheres"... 
A da direita, mais à frente, cruza as pernas na posição de Lotus. Aperta um lenço de seda cor-de-rosa entre as mãos cruzadas, como se fosse o único elo que a mantém amarrada ao mundo material; o olhar ligeiramente desviado para o buraco negro no infinito. Ou para a perda infinita? A cabeça da mulher da esquerda está ligeiramente inclinada, os lábios apertados um contra o outro. Os olhos, semi-cerrados, fitam a areia; eles parecem medir o tamanho da perda. Adivinho sua pergunta, silenciosa: -  O que é que eles trazem, que nos faz sentir tão tristes ? E por que nos sentimos tão vazios, de repente?



Mururoa está chegando ao fim,  afirmava Roger Clark, geólogo da Universidade de Leeds/Inglaterra. Enquanto isso, em Tóquio, Jacques Custeau fazia coro com Chirac e a´escroquerie nucleaire", passeando "fatos" numa coletiva de imprensa: - O fato é que os testes subterrâneos não contaminam absolutamente nada ! 


Fato...
Le grand seigneur perde uma rara oportunidade para ficar calado. Repete a dose de 1992, quando navegou pela Amazônia, onde afirmou ter visto "a floresta intacta", enquanto Rondônia ardia em chamas... 

C'est la vie: le vieux ecologiste, fatigué de la guerre... - ou já teria mudado de lado?

Aliás, a França sempre teve um olhar esquizóide para a realidade. Lembro-me bem, era um sábado ensolarado, em abril de 1986. Estava em turnê pela Alemanha, com outro filme, quando ocorreu o acidente nuclear em Chernobyl (ironicamente, o título do meu filme era "Dose Diária Aceitável"...). Freiburg, na margem oriental do Reno, parecia uma cidade deserta. As pessoas não abandonaram suas casas devido à perigosa nuvem que despejava  césio, estrôncio e outros elementos radioativos sobre a natureza. As vacas estavam presas nos estábulos, estava proibido beber leite fresco, e na fronteira com a França batalhões de guardas, que pareciam ter saltado de um set futurista, barravam os carros sem falar palavra e scannerizavam pessoas e animais de corpo inteiro com seus contadores Geiger, dos quais pipocava um estranho ruído. Seleção darwiniana na era nuclear: "liberar os sadios, os contaminados para o camburão!" (ordem de um oficial do exército, durante exercício de simulação de acidente na usina nuclear em Angra dos Reis, 1990).

Explosão de 1968, Opération Canopus, atoll de Fangataufa

O "Day After" nos apanhara de surpresa, muitos anos antes do que tínhamos imaginado. Mas do outro lado do Reno, em Colmar, a festa continuava, uma estranha festa: feiras de hortigranjeiros, queijos e vinhos,  a população flanando ao ar livre... Então o prefeito rosnou para uma câmera de TV: - Radioatividade ?! Onde ? Eu não vi, cést l'hysterie des allemands, monsieur..


Minha última lembrança de Colmar foi um beco, um acordeão e uma canção, acho que era do Jacques Dutronc, cuja letra  dizia assim: "Les temps sont flous, les gens sont fous  // Ils sont la comme des toutous de Paris a Tombouctou // Quand il s'agit de faire joujou avec des v-new(?)

Segunda trama paralela: os usos ditos pacíficos da energia nuclear... Bielorussia. Estatísticas oficiais admitem pelo menos 200 mil pessoas contaminadas, seis anos após o acidente de Chernobyl


Agora, nos habituaremos a conviver com um novo quadro mental, o retrato das crianças de Chernobyl com a moldura da pós-modernidade: pele coberta por eczemas, pruridos, cabeças sem cabelos, feridas pelo corpo todo, escondidas, é claro, que ninguém gosta de exibir a lepra, radioativa. E este terror ambulante fez Chirac empreender a fuga, atacando os críticos e adversários de testes nucleares: - Estas reações contra a França são histéricas, a verdade ... é que os testes nucleares não oferecem perigo!... 

A verdade...

Charlie Ching em Nova York, 1987: - Temos indicadores, de que no Taiti há milhares de pessoas contaminadas pela radioatividade. Papete, setembro de 1995: líder do movimento separatista confirma a morte de 1.200 taitianos por câncer linfático.

Pounaouia, 1899. 
Da mata exuberante que dá para a praia,  vêm caminhando duas jovens, formosas, daquelas que habitam o imaginário exótico masculino e que atraíram Marlon Brando para uma ilha vizinha. São de uma beleza selvagem, bárbara. Talvez tenham inspirado Gauguin a pendurar aquela plaqueta no pequeno estúdio da Rue Vergintorix, em Paris, onde expôs, em 1894, suas primeiras cinqüenta telas sobre o Taiti: "Te Faruru" (= Aqui se faz amor!). Mas o  rosto delas expressa aquela melancolia de todas as nativas: os olhos desviados ligeiramente para algum lado, fitando um ponto no infinito, os pensamentos "descolados" do presente... Oferecem seus "Seios com flores vermelhas" (tela de 1899) com desprendimento, espécie de última dádiva ao invasor, antes que... 


Então Gauguin decide colocar na vitrine seu quadro definitivo, o daquela mulher estendida sobre um divã à imagem da gata, felina, de pele eriçada, ardendo, esperando o toque, mas em vão:  "Nevermore O. Tahiti", Gauguin fica em Paris, para nunca mais voltar.

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