24 agosto 2014

Frederico Füllgraf - Aquele sábado com Emilie Schindler


Fotos: divulgação


Janeiro de 2012.

Foi há dezenove anos, e fazia um sábado sombrio nas planuras argentinas. 

Estávamos a caminho da cidadezinha de San Vicente, 70 km ao sul de Buenos Aires. Eu me sentia excitado, tinha marcado um encontro com uma personagem mitológica da História, tentando adivinhar o motivo de sua mudança da longínqua Europa para aqueles recônditos.

Marcelo Cantelmi, um dos editores do Clarín, me ligara para o Rio de Janeiro, dizendo, "che, te tengo una historia fascinante!". A referência atingira-me feito raio e em questão de dois dias eu pousava em Buenos Aires; no bolso, a encomenda da TV Alemã. 

Contudo, para localizar a a famosa, mas arcana personagem, fizeram-se necessários alguns lances detetivescos. Meu primeiro contato fora Raúl Colman, repórter do Pagina 12, que descobrira o paradeiro de Emilie, mas me aconselhara pedir a intercessão de um terceiro jornalista. Quem fez a ponte e me anunciou por telefone, foi Max Finkelstein, judeu berlinense que, fugindo dos nazistas, alcançara a América Latina através do Expresso Transsiberiano, via Rússia e Japão, e que depois de caçar onças e animais exóticos na selva boliviana para exportadores de peles, aportara em Buenos Aires na década dos anos 1950, trabalhando para ae agência de notícias DPA, antes de tornar-se o editor do “Semanário Israelita”, em língua alemã.


Com o mapa rodoviário no colo, eu tentava dar indicações para Leticia Vota, minha companheira, que ao volante ziguezagueava pela paisagem. Pela estrada que segue a La Plata, cortando em linha reta o início da pampa, entediante e tristonha, finalmente alcançamos San Vicente. Jan Pablo, nosso filho, com ano e meio de idade, dormia o sono dos justos em sua cadeirinha sobre o banco traseiro do carro.

De repente, lá estava o endereço, Calle San Martín 353; uma casa muito simples (essa da foto), num bairro humilde. 

Baixei do carro, aproximei-me do portão e toquei a campainha. O sangue martelava em minhas têmporas... Passados alguns segundos, uma anciã, cabelos grisalhos, curtos, de estatura baixa, corpo encurvado, apareceu na soleira da porta da casa, baixou os poucos degraus para a calçada e veio abrir o portão. Cumprimentou-me com um ligeiro sorriso, estendeu-me a mão  calejada, e seus olhos faiscavam um estranho brilho aconchegante.


Reparei que Dona Emilie arquejava ao caminhar e quando ela  abriu a porta da sala, espantei-me com a turba de dezoito gatos, que me apresentou, nome por nome, e que, miando e ronronando, enroscavam-se em suas pernas, dificultando ainda mais seus passos pela casa. 

Contou-me que vinha padecendo de uma inclemente osteoporose que lhe triturava as articulações e principalmente os ossos da coluna. Mas não se deteve em ir à cozinha várias vezes, para servir-nos café e um farto prato com pão e frios, que os gatos, já gordos mas desavergonhados, insistiam em devorar, o que eu, constrangido,  não queria comer. 

Chamou-me atenção a modéstia de seus aposentos, hermeticamente fechados, para isolar as fatais correntes de ar para a octogenária , mas era forte o odor do xixi dos gatos, mesclado com os gases do óleo diesel da estufa, que aquecia sofrivelmente a sala, na qual estávamos sentados naquele sábado, frio e chuvoso. 

Percebi que, apesar da fama internacional, Emilie Schindler levava a vida de uma mulher pobre. 

Eu trazia nas mãos um exemplar de “Schindler’s List”, do australiano Thomas Keneally, imaginando que, tanto a edição do livro, quanto a compra dos direitos do mesmo por Steven Spielberg para a roteirização do filme homônimo, lhe tivessem rendido uma polpuda reserva. Boquiaberto, ouvi seu relato queixoso de que o bestseller de Keneally, que já vendera centenas de milhares de exemplares mundo afora, lhe rendera míseros 25 mil dólares, com os quais estava pagando tratamento médico. Pior: Spielberg argumentara ao advogado de Emilie que, com a aquisição dos direitos cinematográficos pagos a Keneally, teria "quitado" sua conta com os Schindler. Emilie não deixou barato, anos mais tarde processando Spielberg.


Mas por que a Argentina - e por que exatamente a mudança para San Vicente?


- Porque não tínhamos mais a cidadania alemã e porque as únicas pessoas dispostas a apoiar-nos eram uns poucos judeus alemães que viviam na Argentina - explica, ajuntando: - E nos deram uma granja de presente, com um pequeno aviário. Mas Oskar protestou, a última coisa que faria na vida era criar galinhas, não tinha nascido pra aquilo! Vivia chateado, entediado, disse que precisava voltar a rodar o mundo, e ao cabo de uns oito anos aqui, um dia me surpreendeu: - "vou me embora!". Despediu-se e nunca mais voltou...

Cinqüenta anos para emergir da sombra de Oskar

Apesar dos dezenove anos que transcorrem desde minha visita, impossível esquecer alguns detalhes: a pintura descascada das paredes da casa, os móveis velhos e mal conservados, as roupas de Emilie, surradas e puídas, seu cabelo desgrenhado e o rosto profundamente vincado por rugas – a tudo aderia a fuligem pastosa da dor feita indiferença, incorporada com resignação. 

Pareceu-me ansiosa em contar sua história, com frases repetitivas e um olhar fixo, perdido no aparente nada, talvez cravado naquele pátio de fábrica em Cracóvia, capaz de aprisionar o tempo nos objetos que a cercavam; tempo que eludia das fotos que, com emoção reprimida, ia retirando de uma caixa de sapatos, estendendo-as sobre a mesa. As fotos remontavam ao final dos anos 1930, na Morávia, República Tcheca, revelando uma jovem mulher vencedora, filha de pais ricos, que apostara todas suas fichas para ser feliz ao lado de Oskar.

Mas o depois, assim insinuavam as duas rugas de amargura nos cantos de sua bonita boca, dilatara-se em intermináveis dias, meses, anos, décadas de espera. Naqueles cantos da boca refugiara-se a pergunta que não queria calar: "por que Oskar me deixou?"

Quando eu lhe disse que uma foto em preto e branco, abraçada ao galã Oskar, batida em frente de sua casa na Morávia, com o carimbo do ano de 1938 ainda legível, me arrancara suspiros, pois era acachapante sua semelhança com Lauren Bacall, Emilie esboçou um sorriso fugaz, logo espantado por um aceno de desdém. - Mas ele sempre viveu pendurado em outras saias! - grunhiu.


Oskar Schindler e "outras saias"

Ao despedir-me daquele primeiro encontro, já parado do lado de fora do portão, perguntei-lhe se poderíamos gravar seu memorável depoimento, que semanas depois seria transmitido pela Deutsche Welle TV mundo afora, em alguma estação de trens de San Vicente. Expliquei-lhe que eu tinha imaginado a despedida de Oskar, em 1957, em uma plataforma de trem. Além do mais, eu guardava em minha memória as fantasmagóricas imagens de estações de trem e o ranger metálico, gritado, das rodas dos vagões carregados de judeus, em lento movimento, rumo aos campos de extermínio. Terror à parte, eu lhe disse: nos filmes antigos os amantes não costumavam despedir-se numa estação de trem? A octogenária sorriu cinicamente, destruindo meu roteiro: - Não foi nada romântico, não. Ele apenas acenou, aí do lado de fora do portão, onde o sr. está parado, virou as costas e partiu! Foi assim que eu o vi pela última vez.

Disse isto com um esgar no canto esquerdo da boca, onde sangravam  cinquenta anos de espera pela volta de seu amor. 

Voltei ao carro e, enquanto rumávamos de volta a Buenos Aires, esforcei-me em dissimular, reclamando do “vento” que debaixo dos óculos escuros me arrancava lágrimas dos olhos. 

A imagem dos trens se instalara de forma tão insistente em meu imaginário que, ao retornar a San Vicente, três dias depois, com minha equipe de TV, teimei em documentar a única estação, onde há anos já não circulavam trens, cujo sino estava enlaçado por uma imensa teia de aranha e cujos trilhos pareciam vir do nada e ir para lugar nenhum.

No filme, usei esta imagem como metáfora de Emilie, la olvidada, cujo ilimitado amor, há muito amalgamado com indignação e fel, escapou-lhe dos lábios, quando mal nos tínhamos acomodado debaixo de um pessegueiro em flor, para gravar a entrevista em seu jardim. 

Apontando para uma pequena elevação de terra coberta de grama, no fundo do pomar, disparou, secamente: - Sabe o que é aquilo? Aquela é a cova do meu cachorro, mais digna e florida que o túmulo de Oskar em Jerusalém. Lhe garanto: ele não merecia outra coisa ! - blasfema.




J.L.Godard: "Spielberg ganhou milhões, mas a sra. Schindler continuou pobre!"

A heroína omitida

Uma por uma, Emilie espinafrou as afirmações do livro de Keneally, que eu mantinha no colo e folheava para as perguntas, que ela respondia diante da câmera. 

O que mais me impressionou e repercutiu mundo afora, foi sua descrição dos enfrentamentos verbais que afirmou ter tido com Amon Göth, o comandante SS do campo de concentração de Cracóvia:  - Certa noite, durante um jantar em nossa casa, quando ele falou aquela baboseira toda, com aquela empáfia patrioteira, sobre a necessidade de sermos ‘bons alemães e esquecermos os judeus’ etc. e tal, pedi-lhe que fosse embora, caso contrário eu lhe meteria a mão na cara, ali mesmo – e ele levantou-se e foi ! - disse, olhando para a câmera, desafiadora, ajuntando:  - O Oskar comia pelas bordas, mas eu não tinha medo daqueles caras, eu os enfrentava! - advertiu.

Com atitudes assim destemidas, Emilie protegeu e salvou, inicialmente, 330 judeus – homens, mulheres e crianças – do extermínio na Polônia ocupada. É que lhe coube decidir, se um grupo de 330 judeus, que já se encontravam presos num trem, deveria seguir para um campo de extermínio, ou ficar com ela, "para trabalhar na fábrica", um subterfúgio contrabandeado para a negociação com os hierarcas nazistas:  - Na realidade, eles estavam muito fracos para trabalhar, mas eu disse aos guardas que precisava deles, assim mesmo, e daí começamos a enterrar os mortos e a tratar dos que estavam esgotados e doentes.

Diante do avanço das tropas soviéticas sobre a Polônia, Oskar e Emilie desarmaram sua fábrica em Cracóvia e a reergueram em Brünnlitz, atual República Tcheca. Remontando em sua memória um cenário de filme de mocinho e bandido, Emilie descreve de forma divertida, como corrompeu com jóias a oficiais e guardas da Wehrmacht e da SS em Brünnlitz, e como conseguiu contrabandear cereais para alimentar os judeus que trabalhavam na fábrica:
- Quando as jóias acabaram, usei vodca para corromper o próprio dono do moinho de cereais, vodca que tínhamos trazido de Cracóvia ! - excitou-se, como se as cenas tivessem ocorrido na noite anterior. 

Com muita persuasão, a justificativa perante a SS “colou” e assim os Schindler conseguiram salvar “seus” judeus da morte.


A impostura de Spielberg

É vã, porém, a tentativa de encontrar estas cenas protagonizadas por Emilie Schindler na “Lista” de Spielberg. Simplesmente porque o diretor hollywoodiano não realizou nenhuma pesquisa adicional ao livro de Keneally, e foi o escritor quem cometeu as graves omissões, limitando-se a entrevistar Oskar, enquanto vivo na Alemanha, e seu ex-assistente em Cracóvia, o judeu Isaac Stern, que elaborara a famosa lista, e que depois da 2a. Guerra emigrara para os EUA. Pior: não tivesse sido Stern - em cuja loja Keneally comprara uma mala e que o seduziu para escrever o livro, para o qual Stern e Oskar tanto buscavam um autor - e Emilie não teria recebido um tostão furado de direitos autorais da venda do livro – por decisão de Oskar - daí sua grande amargura.



Disse-nos Emilie diante da câmera da Deutsche Welle TV:  - Oskar ‘privatizou’ a história da lista, como se tivesse sido seu único protagonista. Nunca me informou que um livro estava sendo escrito e foi graças à decência do Sr. Stern, que advertiu a editora sobre a minha pobre vida na Argentina, que acabei recebendo 20 mil dólares. 

Muito antes de Spielberg, um grande diretor, de fato,  estava apaixonado pela estória, e esta, assim como a vida de Emilie, poderiam ter tomado um rumo completamente diferente. O diretor chamava-se Fritz Lang, o lendário criador de "Metropolis".


Só com muito esforço consegui evitar, pouco antes da estréia do filme de Spielberg, que da entrevista televisiva com Emilie fosse suprimida (censurada, por temor a pressões) sua explosiva denúncia, de que até o final de 1993 não havia recebido nenhum níquel de direitos autorais de Spielberg – acusação renovada contra Spielberg no Festival de Cannes de 2001, pelo cineasta Jean Luc Godard, através de um personagem de seu filme “Elogio do Amor”. 

Pressionado, em 1996 Spielberg resolvera remeter 50 mil dólares à anciã, mas esta levou adiante sua denúncia, que ganhou os foros da Justiça, quando Emilie passou a reivindicar 6% de participação na exploração comercial internacional d’ “A Lista”, que faturou US$ 417,3 milhões de dólares de bilheteria, mundo afora. 

O processo, porém, nunca progrediu e Spielberg ficou lhe devendo até a morte, o que constitui um dos episódios mais antiéticos da história de Hollywood. Não teria custado nada ao oportunista e mais rico dos diretores norte-americanos, gratificar com justiça a grande, porque – comparativamente a Oskar Schindler - modesta e arredia heroína da lendária “Lista”, que durante décadas vegetou socialmente no anonimato de San Vicente, e que continuava pobre, enquanto a “Lista” enriquecia Spielberg. 

São comoventes, por outro lado, as formas através das quais a Argentina, seu país anfitrião, a tratou do primeiro ao último dia sua permanência. Durante mais de 20 anos a comunidade judaica de Buenos Aires custeou suas necessidades básicas com habitação. Foi o Congresso argentino quem a declarou “Cidadã Ilustre da República Argentina” em 1999, foram os jogadores do River Plate quem lhe ofertaram uma cadeira de rodas, quando Emilie já não podia mais caminhar, e foi na Argentina, finalmente, onde Emilie conseguiu publicar seu livro de memórias.

É hilariante que, apesar d’ ”A Lista” de Spielberg e do cerco televisivo, Emilie só tenha conseguido quebrar o anonimato com sua autobiografia - “Eu, Emilie Schindler” - redigida por Erika Rosenberg e lançado internacionalmente na Feira do Livro de Frankfurt de 2001. 


O que fez Emilie retornar à Alemanha, alguns meses antes, foi aquele instinto de animal moribundo, que busca o chão da infância para seu último suspiro. Nos bastidores, entretanto, voltara a travar uma batalha jurídica inteiramente nova: a posse da Mala de Schindler, encontrada no sótão de uma casa na cidade alemã de Hildesheim, pelos filhos de uma “confidente” de Oskar, falecida em 1999. 

A mala havia sido presenteada por Oskar à “amiga”, e continha nada mais e nada menos que os originais da famosa Lista, datilografados por Stern, várias cópias do valioso documento, mapas, fotos e intensa correspondência trocada ao longo de quase vinte anos, desde que deixara a Argentina. Como a mala fora entregue ao jornal Stuttgarter Zeitung, que publicou o material em forma de série, sem consulta a Emilie, esta processou o jornal e reivindicou tanto a posse da mala, como uma indenização no valor de 100 mil Marcos. Através de um acordo, conseguiu um acerto sobre 25 mil, mas a mala já estava depositada no Memorial Jad Vashem, em Israel. 

Até o final de setembro de 2001, Emilie Schindler lutou pela transferência definitiva da lendária mala para a Casa da História da República Federal da Alemanha, em Bonn, mas um derrame a fulminou antes que se regozijasse pelo resgate – de sua própria história e de seus adereços.

Faz onze anos que Emilie Schindler morreu. Faleceu poucos dias antes de seu 94o.  aniversário, numa clínica na cidade de Strausberg, a poucos km de Berlim. Morreu realizando um sonho fragmentado, o do retorno à sua pátria; amarga pátria de ontem. Não a via desde 1949, e quando chegou, disse, fascinada:  “Deutschland ist sehr schön, ich möchte hier bleiben! - A Alemanha é muito bonita, quero ficar aqui”. 

Seu projeto mais importante, porém, o resgate de seu verdadeiro papel histórico na salvação de 1.700 judeus virtualmente condenados à morte, só lentamente emergia das sombras, para as quais “historiadores”, cronistas e Hollywood a haviam empurrado.


20 agosto 2014

Frederico Füllgraf: Cinco Tangos de Cortázar


Fotos: divulgação



Entre divertido e fossento (melancolia resultante da intuição de jamais retornar à sua Argentina e da aproximação do último, irreversível inverno de sua vida) Julio Cortázar começa a escrever (escrever é recordar!) no final dos anos 70 em Nairobi / Quênia, onde exercia funções de tradutor e editor da UNESCO, seu último livro, Salvo el Crepúsculo; várias vezes reeditado na Argentina, mas ainda inédito no Brasil.

Virtuoso painel bric-à-brac, feito de “remendos” (poemas, breves prosas, epígrafes e comentários jocosos) que Cortázar parece colher em empoeiradas caixas de sapatos e agendas rabiscadas, Salve el Crepúsculo revela-se caixinha de jóias, ostentando experimentalismos que vão da ode magistral CE GRE CIA 59 ECE,  escrita alternadamente em francês, inglês e espanhol ao contristado repertório CON TANGOS, de letras todas “imusicáveis”, como se auto-ironiza.

Sobre o gênero diz Cortázar:

“Não sei em que medida as letras do Jazz influenciam os poetas norte-americanos, mas sei, sim, que a nós os tangos devolvem certa recorrência sardônica; cada vez que escrevemos tristeza, que estamos chuvisco, que nos entope a bombilha na metade do chimarrão”.

(…)“Um pouco isso, claro, tangos como re-contos de amores humilhados e recapitulações da desgraça, povo de larvas na memória, mostrando no perfil das melodias e nas quase sempre sórdidas crônicas das letras, as moedas usadas e repetidas, a obstinada numismática da lembrança (…)

Mais adiante irrompe então o contexto histórico: como no longa-metragem Exílios de Gardel (1984), de Pino Solanas, o Tango vibra como esperança e exercício de resistência à sangrenta ditadura militar de 1976, que Cortázar sobreviveria por apenas um ano, ao falecer em 1984, em Paris:

“E chegando nunca desacompanhados: madalenas de Gardel ou de Laurenz, jogando na cara os cheiros e as luzes do bairro (o meu, Banfield, com ruas de terra, na minha infância, com paredões que escondiam os motivos possíveis do medo). Nunca chegando a sós, e nesses últimos anos tão colados ao nosso exílio, que não é o do Lejano Buenos Aires de uma clássica, portenha boemia, mas sim do desterro em massa, furacão do ódio, e o medo. Escutar hoje, aqui, os velhos tangos, já não é uma cerimônia da nostalgia; esse tempo, esta história carregaram-nos de horror e de pranto, foram transformados em máquinas mnemônicas, emblema de tudo o que se vinha preparando desde lá atrás e tão entranhado na Argentina. E então, claro.”
           
Eis, pois, aqui traduzidos, alguns Tangos de Cortázar, exercício poético que pede melodias. É recomendável ouvi-los. 


O truque? Um bandoneão imaginário marcando o compasso...


Ar do sul


Ar do sul, flagelação que leva areia

Com pedaços de pássaros e formigas,

Dente do furacão estendido sobre a planície:

Onde homens cara ao chão sentem passar a morte.

Máquina da pampa, quê engrenagem de cardos

Contra a pele da pálpebra, ó tranças de alhos ébrios,

De ásperas chicórias trituradas.

A debandada furtiva cessa o vento

E o perfil do moinho

Abre entre dois olvidos do horizonte

Uma risada de enforcado. Empina o álamo

Sua coluna dourada, mas o salgueiro

Sabe mais do país, seus cinerários verdes

Retornam silenciosos a beijar as margens da sombra.

Aqui o homem agachado sobre o oco do dia

Bebe seu mate de profundas serpentes e atribui

Os presságios do dia à escondida sorte.

Sua parda residência está no latejar

Que abre ao potro os charcos da baba e a cólera;

Vai retalhando os signos com um facão de prontidão

E sabe da estrela pelo reflexo na poça.
           

Malevolência 76

Como um câncer que avança
Abrindo caminho entre as flores
Do sangue, seccionando os nervos do desejo,
A relojoaria azul das veias,

Granizo de sutil mal-entendido
Avalanche de choros a des-tempo.

Para quê desandar a inútil rota
Que nos levou a esta cega
Contemplação de um cenário oco:

Não me deixaste
Nem o pito atrás da orelha
Já mais não sirvo que
Para escutar Carole Baker
Entre dois tragos de genebra,
,
E ver cair o tempo
como uma chuva de traças
sobre estas calças enrugadas.
 Nairobi, 1976

Quiçá a mais querida

Deste-me a intempérie,
A leve sombra da tua mão
Passando por meu rosto.
Deste-me o frio, a distância,
O amargo café da meia-noite
Entre mesas vazias.

Sempre começou a chover
Na metade do filme,
A flor que para ti levei tinha
Uma aranha esperando entre as pétalas

Creio que sabias
E que favoreceste a desgraça.
Sempre esqueci o guarda-chuva
Antes de ir buscar-te,
O restaurante estava lotado
E vozeavam a guerra nas esquinas.

Foi uma letra de tango
Para tua indiferente melodia.

Milonga

Faz-me falta a Cruz do Sul
Quando a sede me força para cima a cabeça
Para beber teu vinho negro à meia-noite.
E sinto falta das esquinas com armazéns
dorminhocos
Onde treme o perfume do mate na
Pele do ar.

Compreender que isto está sempre lá
Como um bolso onde a cada tanto
A mão busca uma moeda o pente
o canivete
A mão incansável de uma obscura memória
Que reconta os seus mortos.

Cruzeiro do sul mate amargo
E as vozes de amigos
Usando-se com outros.

Bolero
  
Que vaidade imaginar
Que posso dar-te tudo, o amor e a sorte
Caminhos, música e brinquedo.
É verdade que é assim:
É certo que tudo o que é meu te dou,
É certo,
Mas não te basta todo meu
Como não me basta que me dês
Todo teu.

Por isso não seremos nunca
O casal perfeito, cartão postal,
Se somos incapazes de aceitar
Que só na aritmética
O dois nasce do um mais um.

Extraviado (por aí) diz um bilhetinho:

Foste sempre meu espelho
Quero dizer que para me enxergar,
tinha que te olhar.


₢ Copyright das versões em português: F.Füllgraf

Julio Cortázar: Textos en su voz - No, no y no